Cassiano Ricardo – Morrer não será dormir

Morrer não será dormir,
pois não existe horizonte
para poder haver sono.
Será ser indiferente.
Apenas indiferente.
Que tanto faça haver sol
como o sol não seja mais
do que um simples girassol.
Não será, só, o morrer
porque se deixou de ser.
Será – por indiferença –
tanto estar o mundo morto
como imundo estar o morto.
Morrer, mais do que não ser,
é ter perdido o pudor.
É já estar pelo que for.
Como um dia estarei eu.
Quando alguém se tornar neutro
como um dia estarei eu.
Ou entre um pão e uma rosa,
ou mais logicamente entre
um abutre e um beija-flor,
como um dia estarei eu,
é porque, pare esse alguém,
homem por haver nascido,
homem, não por ter querido,
a estrela d’alva morreu.
Ou – indiferentemente –
esse alguém é que morreu.
Sejas tu, ó estrela d’alva,
ou eu.

Cassiano Ricardo – A Cidade Confusa (excerto)

Cassiano Ricardo – A Cidade Confusa

I

A cidade chora
lágrimas elétricas
sobre o corpo anônimo
do eletrocutado.

As figuras tétricas
que residem, mudas,
na parede do templo,
me cercam, na rua.

Como se eu fosse, acaso,
o culpado de algum acontecimento
na noite confusa.

II

O deus unicórnio
que há no escudo do rei,
e que lhe defende
a coroa, me acusa.

Os anjos da guerra
têm rostos cubistas.
Monstros estão nascendo
como animais dourados.

O perfil das coisas
está, agora, sendo
substituído por outro,
doloroso e polêmico.

As ingênuas figuras
dos meus livros de infância
mudaram de rosto…
Como reconhecê-las?

III

Faço das palavras
meu reduto anti-aéreo.
Cada minuto é o fruto
de um difícil relógio.

Toda a fauna do escombro
no chão onde caiu
a estrela voadora
vem chorar no meu ombro.

O habitante da Terra
traz no rosto o estigma
de quem, como o infeliz rei,
decifrou o enigma.

Onde crime mais grave
que alterar-se a silhueta
de uma criatura, de uma
simples borboleta,

não por arte, magia,
ou graça de pintura,
mas por lesão dos seres,
em sua argila obscura.

Quando voltarão
os pombos ao navio?
As palavras ao léxico
hoje tão acerbo?

Deus não fez a linguagem
do homem à sua imagem?
Como no começo,
no fim não será o verbo?

IV

Uma Salomé alva
me traz, em sua salva,
a cabeça de João,
degolado às cinco horas.

Há, em cada sol falso,
uma aurora abolida…
A noite leva o sol,
fica o cadafalso.

Mas, de quem a culpa?
Não o sei; o que sei
é que não fui eu
quem matou os símbolos.

Álvaro de Campos – Lisbon Revisited (1926)

Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja –
Definidamente pelo indefinido…
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver da rua.
Não há na travessa achada o número da porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida…

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.
Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do sul impossível aguardam-me naufrago;
ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.

Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma…
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(E o passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados, derrotados sem ter sido,
As minhas cortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida…
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui…

Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei,
E aqui tornei a voltar, e a voltar.
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos todos os Eu que estive aqui ou estiveram,
Uma série de contas-entes ligados por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo, a alma menos minha.

Outra vez te revejo – Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter que viver…

Outra vez te revejo,
Sombra que passa através das sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir…

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocado de mim –
Um bocado de ti e de mim!…