I
Ao claro tempo, ao tempo
das metamorfoses,
não havia horizonte
na alegria do ser
e do acontecer.
Havia a graça aérea
com que as coisas brincavam
de ser e de não ser,
no jardim da matéria.
Hoje uma coisa passa
a ser outra coisa;
nascem anjos sem asa
dentro do dicionário;
um monstro, um dragão
em lugar de um canário.
Não pela alegria
da metamorfose.
Mas por deformação
de cada ser, ou flor,
em sua geometria.
II
Não te levarei,
ó azul, ó gentil aeromoça,
ao laranjal florido,
ao palácio do rei.
Não irás ver comigo
as Metamorfoses
de Ovídio e de outrora,
mas a vida que é o rosto
das mil e uma feições;
mas as deformações,
divindades de agora.
Não irás ver Júpiter
mudado em cisne, em t’ouro.
Nem Aretusa em fonte;
nem a deusa que um dia
passou a ser a ave
de uma constelação.
Irás ver comigo,
num espelho torto,
entre o número e a rosa
da vida numerosa,
o mundo onde ora estão
as tristes outras coisas
que hoje as coisas são.
(Que é a esperança? uma espera
no outro lado da esfera?
Ou um dado de fogo
numa mesa de jogo?)
III
E até que chegue o dia
das novas hamadríadas
cantarei os lunáticos
ao invés dos lusídadas.