Manuel António Pina – Interiores

Onde estamos agora que não nos vemos,
tu sentada diante da TV
e eu escrevendo isto, não sei o quê,
como outros dois que nós não conhecemos?

Será que alguma coisa permaneceu
do nosso amor como uma inevitabilidade,
uma saudade pousada agora na mão de Deus
existindo para sempre na sua breve eternidade?

Talvez percorramos uma rota circular
através da curvatura do espaço e do tempo
onde haveremos de nos reencontrar;
será que então de alguma forma nos reconheceremos?

Manuel António Pina – Instituto de Oncologia

Estes cumprem o rito antigo mantendo
a chama da morte acesa na obscura água da vida
e engrossam o rio dos mortos
como pura memória sem nome.

Nós rebelamo-nos, levantamos as mãos ao céu,
e depois fechamo-las para deter
o rio da mudança fluindo por entre os dedos,
porque éramos os menos fortes e os menos densos.

Frágeis mãos dispersaram o que nos pertencia
e quando regressámos tinham partido todos.
Agora, diante de nós mesmos para sempre,
até a nossa miséria nos parece alheia.

Manuel António Pina – Talvez de noite (1)

À minha volta tudo envelheceu
como se fosse eu, e no entanto
uma casa, ou um espaço em branco
entre as palavras, ou uma possibilidade de sentido.

Pois nada
surge com a sua própria forma.

Digo “casa”, mas refiro-me a luas e umbrais,
a lembranças extenuadas,
às trevas do corpo, lúcidas,
latejando na obscuridade de quartos interiores.

E digo “palavras” porque
não sei que coisa chamar
à mudez do mundo.

E digo “sentido” sufocado
sob o pensamento
tentando respirar
a golpes de coração,
agora que se desmorona a casa
sobre todas as palavras possíveis.

Manuel António Pina – Depois

Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e de respostas.

Que coração, no entanto, pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.
Porquê, tão tardo, o passado?

Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração o saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança

se recolheram também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas acabadas.

Manuel António Pina – Sétimo Dia

Ao Manuel Hermínio

Voltamos, um a um, da tua morte
para a nossa vida como quem regressa a casa
de uma longa viagem. Para trás ficaram recordações, países,
e agora é como se te tivéssemos sonhado.
A voz que, diante da escuridão, suspendemos
quando se desmoronou o mundo para o fundo de ti
erguemo-la de novo para os afazeres diurnos
e para as horas comuns.
Ainda ontem estávamos sozinhos diante do Horror
e já somos reais outra vez.
A própria dor adormeceu no nosso colo
como um animal de companhia.