Manuel António Pina – A Canção dos Adultos

Parece que crescemos mas não.
Somos sempre do mesmo tamanho.
as coisas que à volta estão
é que mudam de tamanho.

Parece que crescemos mas não crescemos.
São as coisas grandes que há,
o amor que há, a alegria que há,
que estão a ficar mais pequenos.

Ficam de nós distantes
que às vezes já mal os vemos.
Por isso parece que crescemos
e que somos maiores que dantes.

Mas somos sempre como dantes.
Talvez até mais pequenos
quando o amor e o resto estão tão distantes
que nem vemos com estão distantes.

Então julgamos que somos grandes.
e já nem isso compreendemos.

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Manuel António Pina – KM 82

I’m on the highway to hell a 170 à hora
no CD, ou então o rádio para sempre sintonizado
na final da Taça.
Nunca saberás o resultado, Faéton,
hey, mumma, look at me,
I’m on may way to the promised land
e está visto que uma ligação directa não chega
para pôr em marcha uma vida como a tua,
de subúrbio, ou para ir de encontro a um destino
diferente do abono da Caixa ou de um poste de betão.
Para quê palavras agora,
com a moral da história inteiramente à mostra?
E lágrimas, quem as chorará?
Nem a companhia de seguros, pois que
a tua morte foi facto de terceiro
e a tua vida não estava coberta
senão pela chuva da madrugada de sábado.
Um raio de Júpiter ou um pneu rebentado, que importa?
Ovídio ou o Jornal de Notícias?
Ilic frena jacent, ilic temone revulsus
axis, in hac radii fractarum parte rotarum.

Manuel António Pina – Uma noite com Vladimir

Eu sou mais mortal do que o meu corpo,
e as minhas palavras
mais mortais do que eu.

E o teu silêncio, nenhum leitor,
que as minhas palavras avidamente ouvem,
mais mortal do que as minhas palavras.

Ouvir-me-emos
não é a morte o que as palavras procuram?
sob tanta terra?

Manuel António Pina – Sob Escombros

Um tempo houve em que,
de tão próximo, quase podias ouvir
o silêncio do mundo pulsando
onde tu também eras mundo, coisa pulsante.

Extinguiu-se esse canto
não na morte
mas na vida excluída
da clarividência da infância

e de tudo o que pulsa,
fins e começos,
e corrompida pela estridência
e pela heterogeneidade.

Agora respondes por nomes supostos,
habitante de países hábeis e reais,
e precisas de ajuda para as coisas mais simples,
o pensamento, o sofrimento, a solidão.

A música, só voltarás a escutá-la
numa noite lívida,
uma noite mais vulnerável do que todas
(o presente desvanecendo-se, o passado cada vez mais lento)
um pouco antes de adormeceres
sob escombros.

Manuel António Pina – Os Mortos

Eu sei, é preciso esquecer,
desenterrar os nossos mortos e voltar a enterrá-los,
os nossos mortos anseiam por morrer
e só a nossa dor pode matá-los.

Tanta memória! O frenesim
escuro das suas palavras comendo-me a boca,
a minha voz numerosa e rouca
de todos eles desprendendo-se de mim.

Porém como esquecer? Com que palavras e sem que palavras?
Tudo isto (eu sei) é antigo e repetido; fez-se tarde
no que pode ser dito. Onde estavas
quando chamei por ti, literalidade?

E todavia em certos dias materiais
quase posso tocar os meus sentidos,
tão perto estou, e morrer nos meus sentidos,
os meus sentidos sentindo-me com mãos primeiras, terminais.

Manuel António Pina – Estarei ainda muito perto da luz?

Estarei ainda muito perto da luz?
Poderei esquecer
estes rostos,estas vozes,
e ficar diante do meu rosto?
Às vezes,como num sonho,
vejo formas como um rosto
e pergunto: “De quem é este rosto?”
E ainda: “Quem pergunta isto?”
E: “E com quem fala?”
Estarei ainda longe de Ti,
quem quer que sejas ou eu seja?
Cresce a noite à minha volta,
terei palavras para falar-Te?
E compreenderás Tu este,
não sei qual de nós,que procura
a Tua face entre as sombras?
Quando eu me calar
sabei que estarei diante de uma coisa imensa.
E que esta é a minha voz,
o que no fundo de isto se escuta.

Manuel António Pina – de “Cuidados Intensivos”

I

“A esta hora e neste sítio
(miocárdio ventricular esquerdo)
é a abstracta vida que me assalta.
Eles não sabem
que o seu coração pulsa,
ferido, no meu coração,
que a minha dor alheia
vagarosamente mata
os seus sonhos, os seus sentidos,
os seus dias visíveis e invisíveis,
a linha dos telhados
ao longe sobre o céu.
Como saberiam
(com que palavras exteriores?)
que existem
dentro de mim
de um modo fora de mim,
os parentes, os amigos,
a vaga enfermeira da noite,
que enquanto o meu Único coração
morre na minha cabeça
a luz do quarto se
apaga para sempre
e o silêncio se fecha
sobre os corredores?
No quarto ao lado alguém
a noite passada morreu,
provavelmente eu.
Os livros, as flores
da mesa de cabeceira
conhecerão estas últimas coisas
em algum sítio da minha alma?”

Terça-feira, 3 de Março.

 

(…)

Manuel António Pina – Amor como em Casa

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo.Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro.Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

Manuel António Pina – Os Gatos

Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem

Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa

Somos intrusos, bárbaros amigáveis,
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos

 

Manuel António Pina – Farewell Happy Fields – IV

Farewell happy fields
where joy for ever dwells: hail horrors…

Milton, Paradise lost

(Adeus campos felizes; remorsos: adeus.)
vamos os dois ao longo dos dias felizes
conversando e ouço o que dizes
como se quem falasse fosse eu;
(adeus palavras, sonhos de beleza,
montanhas desoladas da infância
donde tudo se via: a alegria
e a cegueira do que não se via;)
vês agora o que eu vejo, a minha sombra
caminhando a teu lado num tempo sem sentido,
quando eu ainda não tinha morrido?

(Adeus perfeição, adeus imperfeição.)
Às vezes pergunto-me se valeu a pena,
se não haveria outra solução,
se não poderia, por exemplo, ter embarcado
num desses barcos que aparecem sempre
milagrosamente na última estrofe,
e se tu não poderias ter ficado
no cais, ou em alguma metáfora mais
imperiosa, partindo também donde te via,
e se assim não teria tudo sido
menos improvável e menos cansativo.

Infelizmente não havia barco onde
coubéssemos eu e as minhas lembranças;
tudo o que havia, tudo o que realmente havia,
a ti o tinha dado
e, dando-to, tinha-to roubado,
e a minha própria morte pairava
entre ti e mim indecisamente,
como uma ideia, não como algo presente.

Agora volto a sítios vastos
uma última vez. Com hesitantes passos
subo as escadas e bato à porta
e tu abres-me a porta mesmo estando morta
e mesmo eu estando morto, como se fôssemos
visitados pelo mesmo sonho.