Manuel António Pina – Quinquagésimo ano

São muitos dias
(e alguns nem tantos como isso…)
e começa a fazer-se tarde de um modo
menos literário do que soía,
(um modo literal e inerte
que, no entanto, não posso dizer-te
senão literariamente).
Mas não há pressa, nem se vê ninguém a correr;
a única coisa que corre é o tempo,
do lado de fora, porque dentro
a própria morte é uma maneira de dizer.
Caem co’a calma as palavras
que sustentaram o mundo,
e nem por isso o mundo parece
menos terreno ou impermanece.
Restam, é certo, alguns livros,
algumas memórias, algum sentido,
mas tudo se passou noutro sítio
com outras pessoas e o que foi dito
chega aqui apenas como um vago ruído
de vozes alheias, cheias de som e de fúria:
literatura, tornou-se tudo literatura!
E a vida? (Falo de uma vida
muda de palavras e de dias, uma vida nada mais que vida;
haverá uma vida assim para viver,
uma vida sem a si mesma se saber?)
Lembras-te dos nossos sonhos? Então
precisávamos (lembras-te?) de uma grande razão.
Agora uma pequena razão chegaria,
um ponto fixo, uma esperança, uma medida.

             18/5/00

Manuel António Pina – Todas as palavras

As que procurei em vão,
principalmente as que estiveram muito perto,
como uma respiração,
e não reconheci,
ou desistiram e
partiram para sempre,
deixando no poema uma espécie de mágoa
como uma marca de água impresente;
as que (lembras-te?) não fui capaz de dizer-te
nem foram capazes de dizer-me;
as que calei por serem muito cedo,
e as que calei por serem muito tarde,
e agora, sem tempo, me ardem;
as que troquei por outras (como poderei
esquecê-las desprendendo-se longamente de mim?);
as que perdi, verbos e
substantivos de que
por um momento foi feito o mundo
e se foram levando o mundo.
E também aquelas que ficaram,
por cansaço, por inércia, por acaso,
e com quem agora, como velhos amantes sem
desejo, desfio memórias,
as minhas últimas palavras.

Manuel António Pina – Café do molhe

Perguntavas-me
(ou talvez não tenhas sido
tu, mas só a ti
naquele tempo eu ouvia)

por que a poesia,
e não outra coisa qualquer:
a filosofia, o futebol, alguma mulher?
Eu não sabia

que a resposta estava
numa certa estrofe de
um certo poema de
Frei Luis de Léon que Poe

(acho que era Poe)
conhecia de cor,
em castelhano e tudo.
Porém se o soubesse

de pouco me teria
então servido, ou de nada.
Porque estavas inclinada
de um modo tão perfeito

sobre a mesa
e o meu coração batia
tão infundadamente no teu peito
sob a tua blusa acesa

que tudo o que soubesse não o saberia.
Hoje sei: escrevo
contra aquilo de que me lembro,
essa tarde parada, por exemplo.

Manuel António Pina – Sérgio

Onde agora estás não alcançam
o clamor dos magistrados
nem a faca do assassino.
A tua própria morte não te pertence já,
é assunto nosso, desprovido e inerte.
Que faremos nós com o teu inúmero corpo,
como te diremos o que está a acontecer-te?

Fechou-se qualquer coisa qualquer porta
espessa e desabitada,
a faca pôs tudo como estava.

Sobram, inúteis, as lágrimas (mais isso que te importa?),
as últimas palavras, a última carta;
se não fosse essa faca seria outra faca
noutra noite noutra auto-estrada
e se não fosses tu seria outro
do mesmo modo vivo e morto.


             31/12/88

Manuel António Pina – Sexta-feira Santa

A conversa era sobre Deus,
embora o teólogo estivesse inclinado
a pensar que fosse sobre outra coisa,
pois era hora de jantar.
Pegou num cigarro e perguntou às senhoras se podia fumar.
Tinha devorado o pargo com honesto apetite
e elogiava as virtudes do cozinheiro.
Só Deus, algures, chorava sobre
os despojos da sua pequena criatura na travessa
a caminho da copa, antes da sobremesa.

Manuel António Pina – Corpo presente

Toda a casa suspendera
a respiração
incapaz de conter
tamanha desproporção,

e eu próprio desaparecera
algures na sala, entre a tua vida e a tua morte.
Atenderam o telefone
falando baixo,

temendo que regressasse
cada coisa do teu lugar
sem estar prontos ainda
para a tua solidão.

Faltava muito
para podermos perceber,
muitos passos para chegarmos
aonde sempre estivéramos:

mais perto do tédio do que da esperança,
da parte do que do todo,
vagueando ainda na tua ausência,
longe do céu e da ideia da morte.

Manuel António Pina – Café Orfeu

Nunca tinha caído
de tamanha altura em mim
antes de ter subido
às alturas do teu sorriso.

Regressava do teu sorriso
como de uma súbita ausência
ou como se tivesse lá ficado
e outro é que tivesse regressado.

Fora do teu sorriso
a minha vida parecia
a vida de outra pessoa
que fora de mim a vivia.

E a que eu regressava lentamente
como se antes do teu sorriso
alguém (eu provavelmente)
nunca tivesse existido.

Manuel António Pina – Numa Estação de Metrô

A minha juventude passou e eu não estava lá.
Pensava em outra coisa, olhava noutra direção.
Os melhores anos da minha vida perdidos por distração!

Rosalinda, a das róseas coxas, onde está?
Belinda, Brunilda, Cremilda, quem serão?
Provavelmente professoras de Alemão
em colégios fora do tempo e do espa-

ço! Hoje, antigamente, ele tê-las-ia
amado de um amor imprudente e impudente,
como num sujo sonho adolescente
de que alguém, no outro dia, acordaria.

Pois tudo era memória, acontecia
há muitos anos, e quem se lembrava
era também memória que passava,
um rosto que entre outros rostos se perdia.

Agora, vista daqui, da recordação,
a minha vida é uma multidão
onde, não sei quem, em vão procuro
o meu rosto, pétala dum ramo úmido, escuro.

Manuel António Pina – As vozes

A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

– Quem é?
– É a mãe morta
– São coisas passadas
– Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficamos sós?

Manuel António Pina – Gare du Sud

Tudo o que temos pertence a outros,
desconhecidos de nós, e ainda a outros,
e temo-lo como se o perdêssemos
ficando uma sombra, a nossa sombra.
Estamos longe de casa e essa sombra
é a única morada a que podemos acolher-nos.

A nossa voz não somos capazes já de ouvi-la, balbuciante;
e se a ouvíssemos não a compreenderíamos
porque falamos uma língua estrangeira.
Tivemos um passado mas também ele não nos pertenceu,
lemo-lo, ou ouvimo-lo a
outros mais densos que nós.

Aonde regressamos então?
Ao lado das fluviantes águas,
águas idas e vindas. Noite!,
alguém nos chama mas
não é ninguém que conheçamos
nem ninguém de quem possamos dizer o nome.

Um murmúrio a que alguma razão passada
prende os sentidos e que perdura
no meio da vozearia da solidão e das interrogações,
um olho cego, um animal indecifrável atravessando a
distância e olhando-nos ainda,
a nós que os nossos olhos já não podem ver.