Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais
Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu
Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi
Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus
O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais
A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock’n’roll
As coisas migram e ele serve de farol
A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fulgaz
Do sexo das meninas
Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom
Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal
No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial
Há algo que jamais se esclareceu:
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei?
Lá mesmo esqueci
Que o destino
Sempre me quis só
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu
Reuniu-se a terra um instante por nós dois
Pouco antes do Ocidente se assombrar
sonho o poema de arquitetura ideal cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras. acordo. e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo. acordo. o prédio, pedra e cal, esvoaça como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se, cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido. acordo, e o poema-miragem se desfaz desconstruído como se nunca houvera sido. acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas e os ouvidos moucos, assim é que saio dos sucessivos sonos: vão-se os anéis de fumo de ópio e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses, metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros sumidos no sorvedouro. não deve adiantar grande coisa permanecer à espreita no topo fantasma da torre de vigia. nem a simulação de se afundar no sono. nem dormir deveras. pois a questão-chave é: sob que máscara retornará o recalcado?
(mas eu figuro meu vulto caminhando até a escrivaninha e abrindo o caderno de rascunho onde já se encontra escrito que a palavra “recalcado” é uma expressão por demais definida, de sintomatologia cerrada: assim numa operação de supressão mágica vou restaurá-la daqui do poema.)
pois a questão-chave é: sob que máscara retornará?
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A letra do cd A Fábrica do poema:
sonho o poema de arquitetura ideal cuja própria nata de cimento encaixa palavra por palavra, tornei-me perito em extrair faíscas das britas e leite das pedras. acordo. e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo. acordo. o prédio, pedra e cal, esvoaça como um leve papel solto à mercê do vento e evola-se, cinza de um corpo esvaído de qualquer sentido. acordo, e o poema-miragem se desfaz desconstruído como se nunca houvera sido. acordo! os olhos chumbados pelo mingau das almas e os ouvidos moucos, assim é que saio dos sucessivos sonos: vão-se os anéis de fumo de ópio e ficam-me os dedos estarrecidos.
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros sumidos no sorvedouro. não deve adiantar grande coisa permanecer à espreita no topo fantasma da torre de vigia. nem a simulação de se afundar no sono. nem dormir deveras. pois a questão-chave é: sob que máscara retornará o recalcado?
Talvez quem sabe um dia
Por uma alameda do zoológico
Ela também chegará
Ela que também amava os animais
Entrará sorridente assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita que na certa eles a ressuscitarão
O século trinta vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias
Agora vamos alcançar
Tudo o que não podemos amar na vida
Com o estelar das noites inumeráveis
Ressuscita-me ainda que mais não seja
Porque sou poeta
E ansiava o futuro
Ressuscita-me
Lutando contra as misérias do cotidiano
Ressuscita-me por isso
Ressuscita-me
Quero acabar de viver o que me cabe
Minha vida para que não mais existam amores servis
Ressuscita-me para que ninguém mais tenha de sacrificar-se
por uma casa, um buraco
Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme
E o pai
Seja pelo menos o Universo
E a mãe
Seja no mínimo a Terra
A Terra
A Terra
Adaptação de Caetano Veloso a partir da tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman