Kim Addonizio – O momento

O jeito como minha mãe se inclinou diante da porta do carro, remexendo as chaves,
demorando uma eternidade
para encontrar a certa, alinhá-la com a fechadura, empurrá-la debilmente
e girar,
o jeito como abriu a porta tão lentamente, curvando-se um pouco mais,
acomodando-se finalmente no assento de couro – ela havia machucado as costelas,
explicou, mas não foi uma lesão
o que eu vi, não o contratempo temporário seguido pela cura,
a obstinada renovação do corpo;
o que vi pela primeira vez foi a velhice, o declínio, a inexorável
aproximação da morte. Mas uma vez no carro,
acomodada atrás do volante, dando ré e se dirigindo para o tráfego
constante na rodovia,
ela voltou a ser ela mesma, minha mãe como eu sempre a conheci:
envelhecendo, sem dúvida,
na casa dos setenta agora, mas ainda cheia de vida, ainda a atleta que ela foi
a vida toda; corrida, golfe
e especialmente tênis – o esporte em que ela se destacou, acumulando
campeonatos – eram tão naturais
para ela como respirar. Durante toda minha vida, ela tinha sido a definição da graça, de uma
confiança inabalável e serena
no corpo; impossível imaginá-la indefesa, frágil, confinada
a um andador ou uma cadeira de rodas.
Agora ela estava cantarolando enquanto dirigia, aquela hesitação momentânea
apagada, sem deixar vestígios.
Nenhum sinal de dor, da dor que ela devia estar sentindo
em seu flanco. Minha mãe
recusava tudo isso, e continuaria recusando. Ela olhava para frente para
a estrada movimentada, o passado praticamente esquecido –
em algum lugar atrás de nós, tristezas, perdas, o terrível conhecimento, mas à nossa frente
um dia que passaríamos juntas,
estávamos indo para lá agora, enquanto ainda havia tempo, nada disso
seria desperdiçado.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

The Moment

The way my mother bent to her car door, fumbling the keys,
taking forever it seemed
to find the right one, line it up with the lock and feebly push it in
and turn,
the way she opened the door so slowly, bending a bit more, easing
herself finally into the leather seat - She'd hurt her ribs, she
explained, but it wasn't injury
that I saw, not the temporary setback that's followed by healing,
the body's tenacious renewal;
I saw for the first time old age, decline, the inevitable easing
toward death. Once in the car, though,
settled behind the wheel, backing out and heading for the steady
traffic on the highway,
she was herself again, my mother as I'd always known her: getting
older, to be sure,
in her seventies now, but still vital, still the athlete she'd been all
her life; jogging, golf,
tennis especially - the sport she'd excelled at, racking up
championships - they were as natural
to her as breath. All my life she'd been the definition of grace, of a
serenely unshakable confidence
in the body; impossible ever to imagine her helpless, frail, confined
to walker or wheelchair.
She was humming now as she drove, that momentary fumbling
erased, no trace of it.
No acknowledgment of pain, of the ache she must be feeling
in her side. My mother
refused all that, she would go on refusing it. She peered ahead at
the busy road, the past all but forgotten -
somewhere behind us griefs, losses, terrible knowledge, but ahead
of us a day we'd spend together,
we were going there now, while there was still time, non of it was
going to be wasted.

Kim Addonizio – Poema da morte

Tenho que trazer isso à tona de novo, não há outro assunto?
Posso esquecer o pedaço achatado de pele de esquilo
agitando-se na estrada, posso esquecer a estrada
e como não consigo parar de dirigir, não importa o que aconteça,
nem mesmo para abastecer, ou por amor, posso por favor não pensar
no meu pai deixado em alguma cidade atrás de mim,
em seu terno azul, com as mãos cruzadas,
e na minha avó queixando-se da bexiga,
engolindo todas as pílulas, e nas cidades pelas quais estou passando agora,
posso tentar não vê-las, as crianças agachadas
nas valas, os orifícios em seus peitos e testas,
a mulher embalando seu tumor, o cão arrastando seus quadris aleijados?
Posso fechar os olhos e recostar se eu quiser,
posso me apoiar nos ombros dos meus amigos
e comer enquanto eles comem, e beber da garrafa
que está sendo passada de mão em mão; posso me animar,
não posso, Cristo? Posso? Deve ter outro assunto, em um minuto
vou pensar nele. Vou. E se você souber qual é, me ajude.
Ajude-me. Lembre-me por que estou aqui.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Death poem

Do I have to bring it up again, isn’t there another subject?
Can I forget about the scrap of flattened squirrel fur
fluttering on the road, can I forget the road
and how I can’t stop driving no matter what,
not even for gas, or love, can I please not think
about my father left in some town behind me,
in his blue suit, with his folded hands,
and my grandmother moaning about her bladder
and swallowing all the pills, and the towns I’m passing now
can I try not to see them, the children squatting
by the ditches, the holes in their chests and foreheads,
the woman cradling her tumor, the dog dragging its crippled hips?
I can close my eyes and sit back if I want to,
I can lean against my friends’ shoulders
and eat as they’re eating, and drink from the bottle
being passed back and forth; I can lighten up, can’t I,
Christ, can’t I? There is another subject, in a minute
I’ll think of it. I will. And if you know it, help me.
Help me. Remind me why I’m here.

Kim Addonizio – O que os mortos temem

Em noites de inverno, os mortos
veem suas fotografias escorregarem
das abas das carteiras,
e suas cartas serem jogadas numa caixa
junto com as roupas para doação.
Ninguém se lembra de suas piadas,
dos tiques nervosos, do medo
de lugares fechados.
Nesses pesadelos, os mortos sentem
a ponta macia de uma borracha
apagando seus ossos. Eles despertam
em pânico, vão pegar um copo de leite
e veem a lua, a neve fresca,
as árvores despojadas.
Talvez preparem um sanduíche de peru,
ou assistam aos padrões no televisor.
É tudo um sonho de qualquer modo.
Em alguns meses,
os relógios serão adiantados*, e quando
os mortos dormirem saberão que os vivos
estão de luto por eles, insuportavelmente sós
e indiferentes à beleza. Nessas noites
os mortos se sentem melhor. Levantam-se
de manhã e quando as flores
cortadas são depositadas diante de seus nomes,
eles sorriem como noivas tímidas. Obrigado,
Obrigado, dizem. Não precisava,
dizem, mas muito baixinho, de modo que soa
como o vento, como nada humano.

Trad.: Nelson Santander

  1. Refere-se ao ajuste dos relógios para o horário de verão, quando se adianta uma hora para aproveitar melhor a luz do dia durante a primavera e o verão. No poema, é um marcador de passagem do tempo, indicando que alguns meses se passaram desde a morte. A mudança de horário também representa uma mudança na vida dos vivos. O mundo continua girando, as estações mudam, a vida segue em frente, o que contrasta vividamente com a existência estática dos mortos. ↩︎

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

What the Dead Fear

On winter nights, the dead
see their photographs slipped
from the windows of wallets,
their letters stuffed in a box
with the clothes for Goodwill.
No one remembers their jokes,
their nervous habits, their dread
of enclosed places.
In these nightmares, the dead feel
the soft nub of the eraser
lightening their bones. They wake up
in a panic, go for a glass of milk
and see the moon, the fresh snow,
the stripped trees.
Maybe they fix a turkey sandwich,
or watch the patterns on the TV.
It’s all a dream anyway.
In a few months
they’ll turn the clocks ahead,
and when they sleep they’ll know the living
are grieving for them, unbearably lonely
and indifferent to beauty. On these nights
the dead feel better. They rise
in the morning, and when the cut
flowers are laid before their names
they smile like shy brides. Thank you,
thank you, they say. You shouldn’t have,
they say, but very softly, so it sounds
like the wind, like nothing human.

Kim Addonizio – Comendo juntas

Sei que minha amiga está partindo,
embora ela ainda esteja sentada
à minha frente no restaurante
e se incline sobre a mesa para mergulhar
seu pão no azeite do meu prato; sei
como o cabelo dela costumava ser espesso,
e o que custa para ela deixar de lado
seu boné masculino no meio da refeição,
olhar diretamente para o jovem garçom
e sorrir quando ele pergunta
se estamos gostando. Ela come
como se estivesse faminta — frango, dolmas,
as camadas amanteigadas da massa folhada —
e o que a está consumindo
se alimenta também. Eu a observo levantar
uma reluzente azeitona preta e retirar
a carne do caroço, observo
seus dedos longos e finos, e seu rosto,
inchados pela medicação. Ela baixa
os olhos para a comida, fingindo
não saber o que eu sei. Ela está partindo.
E continuamos comendo.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Eating Together

I know my friend is going,
though she still sits there
across from me in the restaurant,
and leans over the table to dip
her bread in the oil on my plate; I know
how thick her hair used to be,
and what it takes for her to discard
her man’s cap partway through our meal,
to look straight at the young waiter
and smile when he asks
how we are liking it. She eats
as though starving—chicken, dolmata,
the buttery flakes of filo—
and what’s killing her
eats, too. I watch her lift
a glistening black olive and peel
the meat from the pit, watch
her fine long fingers, and her face,
puffy from medication. She lowers
her eyes to the food, pretending
not to know what I know. She’s going.
And we go on eating.

Kim Addonizio – Para a mulher que chora descontroladamente no banheiro ao lado

se você já acordou vestida às 4 da manhã
fechou as pernas para alguém que amava abriu-
as para alguém que não roçou-se contra
um travesseiro no escuro ficou miseravelmente em uma praia
algas agarradas em seus tornozelos pagou
uma boa grana por um corte de cabelo ruim se afastou
de um espelho que queria matá-la sangrou
no banco de trás por falta de um absorvente
se atravessou um rio a nado sob a chuva cantou
usando um vibrador como microfone ficou acordada
para ver a lua engolir o sol inteiro
arrancou os pontos do seu coração
porque por que não? se você acredita que nada &
ninguém pode / ouça eu te amo a alegria está a caminho

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

To the Woman Crying Uncontrollably in the Next Stall

If you ever woke in your dress at 4 A.M. ever
closed your legs to someone you loved opened
them for someone you didn’t moved against
a pillow in the dark stood miserably on a beach
seaweed clinging to your ankles paid
good money for a bad haircut backed away
from a mirror that wanted to kill you bled
into the back seat for lack of a tampon
if you swam across a river under rain sang
using a dildo for a microphone stayed up
to watch the moon eat the sun entire
ripped out the stitches in your heart
because why not if you think nothing &
no one can / listen I love you joy is coming