John Murillo – Dolores, talvez

Nunca contei isso a ninguém. Até agora, até você.

Dormi uma vez num campo além da ribeira,
um bando de noitibós velando por mim.

Foi no verão em que um fazendeiro encontrou sua filha
pendurada no sótão do celeiro, e desejou, pela primeira vez,
não tê-la tocado daquela maneira.

Gostaria de dizer que éramos próximos — a menina e eu,
digo — mas eu só a conhecia de cumprimentar,

e uma vez a acompanhei até a metade do caminho
antes de finalmente entrar no quintal da minha avó.

Isso foi em Ontario, Califórnia. 1983.
O que quer dizer que não havia rio algum.
E eu não saberia reconhecer um noitibó nem se ele me bicasse.

Mas a menina era real. E o dia em que a encontraram foi real.

E o vestido que ela usava, o mesmo da nossa caminhada —
pervinca, ela o chamava; eu o chamava azul,
azul com flores amarelas brilhantes por toda parte

— o vestido e as flores, eles também eram reais.

E na nossa caminhada, lembro, cortamos caminho pelo pátio ferroviário,
e nos deparamos com um coiote morto perto dos trilhos.

Uma frágil e empoeirada pilha de remorso, ele não fazia companhia a ninguém.

Ficamos olhando para ele por algum tempo, nossas sombras se alongando, cobrindo o animal.
Ela disse algo que eu lembraria por anos, sobre solidão,

mas que há muito esqueci, do mesmo jeito que esqueci —
embora possa ver seu rosto como se ela estivesse aqui — seu próprio nome.

Vamos chamá-la Dolores, de dolor. Espanhol para angústia.

E qualquer que fosse o céu, por mais adorável que fosse aquela tarde,
lembro principalmente do vento,
de como uma brisa desfez o que restava de uma trança,

e de quando tentei afastar alguns fios soltos
da testa de Dolores, como ela se encolheu,
como correu o resto do caminho até sua casa,

e como nunca mais a vi depois disso,
exceto quando a carregaram do celeiro — seu vestido pervinca,
seus braços e pernas azuis, e os campos
em chamas com margaridas.

Passei o resto daquele verão no pátio ferroviário
com meu coiote morto, vendo os trens serem carregados e partirem.

O verão todo, eu o apedrejei.
O verão todo, usei as pedras para soletrar o nome da menina —
Dolores, talvez — no chão.

O verão todo, formigas lava-pés rastejaram entre as letras —
o nome dela, agora, sua própria cidadela.

Uma temporada de calor e chuvas fortes reduziram meu coiote a nada.
Só restaram dentes e alguns ossos resistentes

que se recusaram, por fim, a partir.

Semanas depois do outono, alguém encontrou o pai
pendurado nas mesmas vigas rangentes,
o sótão do celeiro preto de moscas varejeiras.

Mas isso foi em 1983. Ontario, Califórnia.
O que quer dizer que as moscas estão mortas. As formigas também.
E nem o campo nem o celeiro estão onde os deixei.

Nunca contei isso a ninguém. Até agora, até você.

Juntei um punhado de ossos e dentes do meu coiote,
e os atei todos com uma linha de pesca —
um talismã para espantar a angústia. Um talismã que estendo a você agora.

Por favor. Aproxime-se. Pegue-o da minha mão.

Trad.: Nelson Santander

Mais do que uma leitura, uma experiência. Clique, compre e contribua para manter a poesia viva em nosso blog

Dolores, Maybe

I’ve never spoken to anyone about this. Until now, until you.

I slept once in a field beyond the riverbank,
a flock of nightjars watching over me.

That was the summer a farmer found his daughter
hanging in the hayloft, and wished, for the first time,
he had not touched her so.

I wish I could say we were close—the girl and I,
I mean—but I only knew her to wave hello,

and walked her, once, halfway up the road
before turning finally into my grandmother’s yard.

This was Ontario, California. 1983.
Which is to say, there was no river.
And I wouldn’t know a nightjar if it bit me.

But the girl was real. And the day they found her, that was real.

And the dress she wore, same as on our walk—
periwinkle, she called it; I called it blue,
blue with bright yellow flowers all over

—the dress and the flowers, they too were real.

And on our walk, I remember, we cut through the rail yard,
and came upon a dead coyote lying near the tracks.

A frail and dusty heap of regret, he was companion to no one.

We stared at him for some time, our shadows stretched long and covering the animal.
She said something I’d remember for years, about loneliness,

but have long forgotten, the way I’ve forgotten—
though I can see her face as if she were standing right here—her very name.

Let’s call her Dolores, from dolor. Spanish for anguish.

And whatever the sky, however lovely that afternoon,
I remember mostly the wind,
how a breeze unraveled what was left of a braid,

and when I tried to brush from Dolores’s brow
a few loose strands, how she flinched,
how she ran the rest of the way home,

how I never saw her after that,
except when they carried her from the barn—her periwinkle dress,
her blue legs and arms, and the fields
ablaze with daisies.

I spent the rest of that summer in the rail yard
with my dead coyote, watching trains loaded and leaving.

All summer long, I’d pelt him with stones.
All summer long, I’d use the stones to spell the girl’s name—
Dolores, maybe—in the dirt.

All summer long, fire ants crawled over and between each letter—
her name, now, its own small town.

A season of heat and heavy rains washed my coyote to nothing.
Only teeth and a few stubborn bones

that refused, finally, to go down.

Weeks into autumn, someone found the father
hanged from the same groaning tie-beams,
the hayloft black with bottle flies.

But that was 1983. Ontario, California.
Which is to say, the bottle flies are dead. So, too, the ants.
And neither field nor barn is where I left it.

I’ve never spoken to anyone about this. Until now, until you.

I gathered a handful of my coyote’s bones, his teeth,
and strung them all on fishing wire—
a talisman to ward off anguish. A talisman I hold out to you now.

Please. Come closer. Take this from my hand.

John Murillo – Variações sobre um tema de Elizabeth Bishop

Comece com a perda. Perca tudo. Então perca tudo outra vez.
Perca uma boa mulher em um dia ruim. Encontre uma mulher melhor,
e depois perca cinco amigos correndo atrás dela. Aprenda a perder como se
sua vida dependesse disso. Aprenda que sua vida depende disso.
Aprenda como se aprende caratê, ou a andar de bicicleta. Aprenda-o, domine-o.
Perca dinheiro, perca tempo, perca sua mente natural.
Seja abandonado e depois aprenda a abandonar. Perca e
perca novamente. Mensure o caixão de um pai em comparação com as
células T de um primo. Beije sua irmã através do vidro de uma cela.
Saiba por que sua mulher não está atendendo suas ligações.
Perca o sono. Perca a religião. Perca sua carteira em El Segundo1.
Abra sua janela. Ouça: as últimas notas lentas
de uma canção de Donny Hathaway2. Uma criança chorando. Ouça:
um bêbado pragueja contra a lua. Ele soa como
seu tio morto que, antes de partir, perdeu uma perna
para o açúcar. Uma vergonha. Aprenda que o que é dado pode ser tomado;
e o que pode ser tomado, o será. Pode apostar nisso sem
perder. Claro como o anoitecer e uma cama vazia. Perca
e perca de novo. Perca até que isso seja a sua segunda natureza. Perca
mais, e perca mais rápido3. Incline-se pela janela aberta, ouça:
a criança está rindo agora. Não, é o bêbado de novo
na rua, perdendo sua voz, sofrendo por estrelas invisíveis.

Trad.: Nelson Santander

Nota:

  1. Cidade americana do Estado da Califórnia.
  2. Cantor e compositor norte-americano de soul, gospel e jazz que se suicidou em 1979, aos 33 anos de idade.
  3. Primeiro verso da terceira estrofe de “One Art”, de Elizabeth Bishop, ao qual o presente poema faz referência expressa. Para ajudar na compreensão da presente tradução, colo aqui a tradução magnífica que Paulo Henriques Britto fez do poema de Bishop e, na sequência, o original:

A Arte de Perder

A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subseqüente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

— Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Trad.: Paulo Henriques Britto

One Art

The art of losing isn’t hard to master;
so many things seem filled with the intent
to be lost that their loss is no disaster,

Lose something every day. Accept the fluster
of lost door keys, the hour badly spent.
The art of losing isn’t hard to master.

Then practice losing farther, losing faster:
places, and names, and where it was you meant
to travel. None of these will bring disaster.

I lost my mother’s watch. And look! my last, or
next-to-last, of three loved houses went.
The art of losing isn’t hard to master.

I lost two cities, lovely ones. And, vaster,
some realms I owned, two rivers, a continent.
I miss them, but it wasn’t a disaster.

– Even losing you (the joking voice, a gesture
I love) I shan’t have lied. It’s evident
the art of losing’s not too hard to master
though it may look like (Write it!) like a disaster.

Variation on a Theme by Elizabeth Bishop

Start with loss. Lose everything. Then lose it all again.
Lose a good woman on a bad day. Find a better woman,
then lose five friends chasing her. Learn to lose as if
your life depended on it. Learn that your life depends on it.
Learn it like karate, like riding a bike. Learn it, master it.
Lose money, lose time, lose your natural mind.
Get left behind, then learn to leave others. Lose and
lose again. Measure a father’s coffin against a cousin’s
crashing T-cells. Kiss your sister through prison glass.
Know why your woman’s not answering her phone.
Lose sleep. Lose religion. Lose your wallet in El Segundo.
Open your window. Listen: the last slow notes
of a Donny Hathaway song. A child crying. Listen:
a drunk man is cussing out the moon. He sounds like
your dead uncle, who, before he left, lost a leg
to sugar. Shame. Learn what’s given can be taken;
what can be taken, will. This you can bet on without
losing. Sure as nightfall and an empty bed. Lose
and lose again. Lose until it’s second nature. Losing
farther, losing faster. Lean out your open window, listen:
the child is laughing now. No, it’s the drunk man again
in the street, losing his voice, suffering each invisible star.