O rio passa, passa
e nunca cessa.
O vento passa, passa
e nunca cessa.
A vida passa:
nunca regressa.
Versão: Herberto Helder
REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 10/12/2018
Nelson Santander
O rio passa, passa
e nunca cessa.
O vento passa, passa
e nunca cessa.
A vida passa:
nunca regressa.
Versão: Herberto Helder
Li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objetos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável, apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega.
dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra
não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz
dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!
Trad.: Helberto Helder
Carlos Edmundo de Ory – Dame
Dame algo más que silencio o dulzura
Algo que tengas y no sepas
No quiero regalos exquisitos
Dame una piedra
No te quedes quieto mirándome
como si quisieras decirme
que hay demasiadas cosas mudas
debajo de lo que se dice
Dame algo lento y delgado
como un cuchillo por la espalda
Y si no tienes nada que darme
¡dame todo lo que te falta!