Cassiano Ricardo – Evocação dos Mortos

Um dia conversarei com os meus mortos.
E todos os que morri (os muitos eus que eu fui)
reunidos inquietos sôfregos cada qual com um meu rosto na mão,
me contarão (sua) a minha história.
Não obstante a tua gélida memória.
Ah, os defuntos que ficaram atrás de mim fotograficamente,
agora juntos.
Não acredito que aquele menino fui eu…
Nem acreditarei que um dia fui menino, a não ser
[que a minha dúvida se desfaça numa lágrima de identidade.

Um dia conversarei com os meus mortos.
Com todos os que fui sucessivos.
Tão mortos que não os sinto mais, nem reconheço
senão por uma cicatriz.
Mas todos presos ao meu ainda estar vivo.
Como uma estranha multidão de mim mesmo.
Como figuras trágicas de uma comitiva obrigatória.
Como comparsas de uma mesma cena continuada
que os faz um só quando uns atrás dos outros,
cinematicamente.

Cemitério de plena e rútila perspectiva
por onde espio o outro lado das coisas.
Por onde me vejo, e vejo as coisas que conversam
atrás de mim, que estou defronte do teu horizonte.

Há uma hora em que o teu refúgio é o meu subterfúgio.
O meu desesperado subterfúgio.
Não só a certeza límpida que me dás de que ninguém me agredirá pelas costas.

A dor que sinto é de hoje
não as que senti ontem e morreram comigo.
O meu lamento de ontem é histórico e desbotado.
Um pássaro empalhado, ou um couro curtido.
Uma dor que passou cristaliza-se, por arte
da natureza, passou a ser um simples material para espelho.
Uma fotografia não sente a mais mínima dor.
Mesmo que doa em nós quando mais dói…
Os meus mortos já se esqueceram destas coisas.
Prova de que estão mortos e pra sempre enterrados
No teu cemitério que só é mais frio do que os outros
por ser de cristal.

(De cristal como é o copo onde a água é mais pura
porque adquire uma cintilação de estrela)

Abismo de onde vim, deixando atrás de mim
os outros que virão conversar comigo, mas de frente,
na tua inversão prodigiosa.

Não me será preciso o ritual que Ulisses observou
quando para invocar as cabeças dos mortos
degolou suas rezes e fez o sangue rubro escorrer numa cova
desembainhando a espada para conter tantas sombras
que lhe queriam falar a um só tempo.

(O primeiro foi Elpenor que ainda não tinha sido sepultado)
Antes, diante do teu cemitério,
não sou mais que Elpenor – um corpo por chorar e insepulto.

Dia virá em que a ciência cristalizará certo pranto para
[a fabricação de um espelho.
Então o parentesco lágrima com espelho
terá sua explicação.

Os mortos me trazem, cada um (sua) a cabeça,
que foi minha, na mão.
A multidão está reunida agora, como peixes
no fundo de uma primavera sub-marinha.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 21/02/2016

Cassiano Ricardo – Testamento

Deixo os meus olhos ao cego
que mora nesta rua.
Deixo a minha esperança
ao primeiro suicida.
Deixo à polícia meu rasto,
a Deus o meu último eco.
Deixo o meu fogo-fátuo
ao mais triste viandante
que se perder sem lanterna
numa noite de chuva.
Deixo o meu suor ao fisco
que me cobriu de impostos;
e a tíbia da perna esquerda
a um tocador de flauta
para, com o seu chilreio,
encantar a mulher e a cobra.
Às coisas belas do mundo
deixo o olhar cerúleo e brando
com que, nas fotografias,
as estarei, sempre, olhando…
Aos noturnos assistentes
de última hora – aos que ficam,
o sorriso interior e sábio
que nunca me veio ao lábio.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 07/11/2016

Cassiano Ricardo – O Espelho

Um meio-dia nu, numa enorme moldura
de prata.
Parece mais o escudo de um arcanjo de fogo.
Mas não é nada. É apenas um espelho.
Um rico espelho. De extraordinário fulgor.
Próprio pra ser colocado à parede
de um ministério da Fazenda, ou de uma casa
de jogo.

Toda a cidade cabe dentro dele.
Árvores, automóveis, povo, casas de comércio
e vendedores de jornais, principalmente.
Enfim, todo o vaivém instantâneo da rua
salpicado aqui e ali pelo sol matutino.
Resultado de tudo, ele é uma coisa viva,
de gestos súbitos e esplendor repentino.

Quatro operários o conduzem pela rua.
E há uma outra rua nele, ainda mais coletiva,
é a rua oposta, extremamente nítida,
por onde vêm nossos melhores camaradas,
os nós mesmos,
ao nosso encontro, fáceis, momentâneos.

São os nossos irmãos, nascidos de repente
e em grande número.
Imagens conduzindo os nossos rostos,
ao nosso encontro, fáceis, simultâneos.
Enquanto os quatro operários conduzem o espelho
de rua em rua.

Mas não é nada. É apenas um espelho,
terrivelmente nu, que ora é azul no reflexo,
ora vermelho. É, apenas, um espelho.

Afinal, que é um espelho? um mágico de circo
casado com uma grande mulher nua
que é a vida, que é a verdade nua e crua.

Ó loucos, que levais o espelho pela rua,
quem vos encomendou tão estranho transporte?

Quando não haja nada num espelho,
há todas as hipóteses de nudez proibida
que sempre acodem à imaginação do povo.
Há uma população mágica e instantânea que mora,
toda, em sua superfície álgida.

Quando não haja nada num espelho,
há mesas verdes onde os números da fortuna
dançam.
Há duas mãos nervosas segurando um baralho
até clarear o dia.

Há o tresnoitado que, depois de haver perdido tudo,
se mira no cristal e aí se vê tragicamente,
peito engomado e colarinho duro,
mas nu, completamente nu, por dentro.

Há muito rosto, para quem – a uma certa hora –
olhar no espelho é um convite ao suicídio.

Quando não haja nada, nada, num espelho,
há ainda a hipótese
de que ele possa incendiar uma esquadra.

Quando não haja nada, absolutamente nada,
no abismo límpido de um espelho
há a pior nudez, a nudez feérica do Nada!

E o seu reflexo é tão súbito
que fere como ponta de aço os olhos inocentes
das crianças reunidas na calçada
só para o ver passar enormemente oblongo
e rútilo.

Ó loucos, escondei esse esplendor terrífico
pra que as ruas não mais se olhem no espelho
e o povo não se verifique.

Escondei-o até que a noite desça
pois as estrelas serão mais suaves e mansas…

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 03/07/2016

Cassiano Ricardo – Ladainha

Por que o raciocínio,
os músculos, os ossos?
A automação, ócio dourado.
O cérebro eletrônico, o músculo
mecânico
mais fáceis que um sorriso.

Por que o coração?
O de metal não tornará o homem
mais cordial,
dando-lhe um ritmo extra-
corporal?

Por que levantar o braço
para colher o fruto?
A máquina o fará por nós.
Por que labutar no campo, na cidade?
A máquina o fará por nós.
Por que pensar, imaginar?
A máquina o fará por nós.
Por que fazer um poema?
A máquina o fará por nós.
Por que subir a escada de Jacó?
A máquina o fará por nós.

Ó máquina, orai por nós.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 25/06/2016

Cassiano Ricardo – O Relógio

Diante de coisa tão doída
conservemo-nos serenos.

Cada minuto de vida
nunca é mais, é sempre menos.

Ser é apenas uma face
Do não ser, e não do ser.

Desde o instante em que se nasce
já se começa a morrer.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 17/04/2016

Cassiano Ricardo – O Cacto

This is cactus land.
Here the stone images
are raised…
T. S. ELIOT

Vamos, todos, brincar de cacto
na areia da nossa tristeza.
Uma folha sobre outra,
em caminho do céu intacto.

Uns nos ombros dos outros,
um braço a nascer de outro braço,
uma folha sobre outra,
formaremos um grande cacto.

De cada braço, já no espaço,
nascerá mais um braço, e deste
outros braços, qual ramalhete
de flores para um só abraço.

Filhos da pedra e do pó,
fique aqui embaixo o nosso orgulho,
pisado sobre o pedregulho.
Formaremos, num corpo só,

(uma folha sobre outra,
uma folha sobre outra,
um braço a nascer de outro braço)
a nossa escada de Jacó.

Pra que torre de Babel
ou o Empire State, compacto,
se, uns nos ombros dos outros,
chegaremos ao céu, num cacto?

Uma folha sobre outra
e já uma árvore de feridas
por entre os anjos de azulejo
e as borboletas repetidas.

Que fique aqui embaixo a terra;
lá de cima nós tiraremos
uma grande fotografia
do seu rosto de ouro e prata.

Pra provar a Deus que a terra,
numa fotografia exata,
não é redonda, mas chata;
não é redonda, mas chata.

Pra provar, por B mais H,
que o homem, animal suicida,
já sabe fabricar estrelas…
Se é que Deus disto duvida.

Que iríamos fabricar luas
(se não fora, para Seu gáudio,
o espião nos ter furtado a fórmula)
mais bonitas do que as Suas.

Vamos, todos, brincar de cacto,
uns nos ombros dos outros,
um braço a nascer de outro braço,
uma foha sobre outra.

Vamos subir, de folha em folha,
mais alto do que vai o avião.
Lá onde os anjos jogam pedras
no cão da constelação.

Que outros usem avião a jato
pra uma viagem em linha reta;
nós, filhos da planície abjeta,
subiremos ao céu num cacto.

Uns nos obros dos outros,
injustiças sobre injustiças,
formaremos um verde pacto…
Vamos, todos, brincar de cacto.

Vamos, todos, brincar de cacto.

 

REPUBLICAÇÃO. Poema originalmente publicado no blog em 25/03/2016.

Cassiano Ricardo – A Graça Triste

Só me resta agora
Esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.
Ouço agora o rumor
Das raízes da noite,
Também o das formigas
Imensas, numerosas,
Que estão, todas, corroendo
As rosas e as espigas.

Sou um ramo seco
Onde duas palavras
Gorjeiam. Mais nada.
E sei que já não ouves
Estas vãs palavras.
Um universo espesso
Dói em mim com raízes
De tristeza e alegria.
Mas só lhe vejo a face
Da noite e a do dia.

Não te dei o desgosto
De ter partido antes.
Não te gelei o lábio
Com o frio do meu rosto.
O destino foi sábio:
Entre a dor de quem parte
E a maior — de quem fica —
Deu-me a que, por mais longa,
Eu não quisera dar-te.

Que me importa saber
Se por trás das estrelas
haverá outros mundos
Ou se cada uma delas
É uma luz ou um charco?
O universo, em arco,
Cintila, alto e complexo.
E em meio disso tudo
E de todos os sóis,
Diurnos, ou noturnos,
Só uma coisa existe.

É esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.

É uma lápide negra
Sobre a qual, dia e noite,
Brilha uma chama verde.

REPUBLICAÇÃO. Poema originalmente publicado no blog em 17/02/2016.

Cassiano Ricardo – Depois de Tudo

Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.

Cassiano Ricardo – Testamento

Deixo os meus olhos ao cego
que mora nesta rua.
Deixo a minha esperança
ao primeiro suicida.
Deixo à polícia meu rasto,
a Deus o meu último eco.
Deixo o meu fogo-fátuo
ao mais triste viandante
que se perder sem lanterna
numa noite de chuva.
Deixo o meu suor ao fisco
que me cobriu de impostos;
e a tíbia da perna esquerda
a um tocador de flauta
para, com o seu chilreio,
encantar a mulher e a cobra.
Às coisas belas do mundo
deixo o olhar cerúleo e brando
com que, nas fotografias,
as estarei, sempre, olhando…
Aos noturnos assistentes
de última hora – aos que ficam,
o sorriso interior e sábio
que nunca me veio ao lábio.

Cassiano Ricardo – Morrer não será dormir

Morrer não será dormir,
pois não existe horizonte
para poder haver sono.
Será ser indiferente.
Apenas indiferente.
Que tanto faça haver sol
como o sol não seja mais
do que um simples girassol.
Não será, só, o morrer
porque se deixou de ser.
Será – por indiferença –
tanto estar o mundo morto
como imundo estar o morto.
Morrer, mais do que não ser,
é ter perdido o pudor.
É já estar pelo que for.
Como um dia estarei eu.
Quando alguém se tornar neutro
como um dia estarei eu.
Ou entre um pão e uma rosa,
ou mais logicamente entre
um abutre e um beija-flor,
como um dia estarei eu,
é porque, pare esse alguém,
homem por haver nascido,
homem, não por ter querido,
a estrela d’alva morreu.
Ou – indiferentemente –
esse alguém é que morreu.
Sejas tu, ó estrela d’alva,
ou eu.