—Nos
—fios
—ten
sos
—da
—pauta
—de me-
tal
—as
— an/
do/
ri/
nhas
—gri-
tam
—por
—fal/
ta/
—de u-
ma
—cl’a-
ve
—de
—sol
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016
Nelson Santander
—Nos
—fios
—ten
sos
—da
—pauta
—de me-
tal
—as
— an/
do/
ri/
nhas
—gri-
tam
—por
—fal/
ta/
—de u-
ma
—cl’a-
ve
—de
—sol
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016
I
Ao claro tempo, ao tempo
das metamorfoses,
não havia horizonte
na alegria do ser
e do acontecer.
Havia a graça aérea
com que as coisas brincavam
de ser e de não ser,
no jardim da matéria.
Hoje uma coisa passa
a ser outra coisa;
nascem anjos sem asa
dentro do dicionário;
um monstro, um dragão
em lugar de um canário.
Não pela alegria
da metamorfose.
Mas por deformação
de cada ser, ou flor,
em sua geometria.
II
Não te levarei,
ó azul, ó gentil aeromoça,
ao laranjal florido,
ao palácio do rei.
Não irás ver comigo
as Metamorfoses
de Ovídio e de outrora,
mas a vida que é o rosto
das mil e uma feições;
mas as deformações,
divindades de agora.
Não irás ver Júpiter
mudado em cisne, em t’ouro.
Nem Aretusa em fonte;
nem a deusa que um dia
passou a ser a ave
de uma constelação.
Irás ver comigo,
num espelho torto,
entre o número e a rosa
da vida numerosa,
o mundo onde ora estão
as tristes outras coisas
que hoje as coisas são.
(Que é a esperança? uma espera
no outro lado da esfera?
Ou um dado de fogo
numa mesa de jogo?)
III
E até que chegue o dia
das novas hamadríadas
cantarei os lunáticos
ao invés dos lusídadas.
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016
Não adianta o rio lhe ofertar um espelho,
se ele não sabe de quem é a imagem
que o espelho reflete. Se ele pensa que a sua
imagem n’água é a de um outro hipopótamo.
A paisagem por volta tem algo de bíblico
pois é a água da criação, ainda viva,
como no primeiro dia. As árvores folhudas
guardam segredos a ninguém, jamais, contados.
São árvores virgens fotograficamente.
Milhões de borboletas voam em redor
da estrela diurna, as flores são douradas bocas
de uma lúbrica, gigantesca primavera.
Um céu vestido de azul-rei (mal brilha a alva),
completa a inenarrável beleza das coisas.
E eis que, foto-potamo-gráfico, o hipopótamo
emerge dágua e vem, rombudo, estragar tudo.
Tudo parecia em ordem, o céu pernalta,
as aves egípcias, os troncos que simulam
primitivas colunas de algum templo, a lisa
epiderme do rio enrolado na cauda.
Sim, o rio e as demais serpentes que aí moram
dormiam tranquilos, quando a enorme figura
do hipopótamo perturbou tudo e agitou
as cores, e inda fez as borboletas voarem,
elétricas, e as garças gritarem no abismo.
Porém ele, na glória de sua inconsciência,
nem sabe que desfez a alegria das coisas.
Pensa que tudo é festa e a natureza o aplaude.
Até que volta a calma e se refaz o espelho
maravilhoso. Mas, que adianta o espelho
se o que ele quer é a lama? se ele pensa que a sua
imagem n’água é de um outro hipopótamo?
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 26/03/2016
Sois o Bloco dos Suicidas.
Paradoxo pensar que todo suicí-
dio
será a morte de Deus
em nós.
Nós não. Vamos salva-l’O
da hecatombe em que, afinal,
tudo tombe.
Nós O queremos vivo e salvo
mesmo escanhoado de
qualquer ornamento, pluma ou
liturgia. Calvo.
Sem nenhum arco-íris na
cabeça
ou púrpura.
Não esquartejado numa vila rica
ou atado ao rabo de um cavalo
eletrônico,
ossos enterrados numa fossa da
Lua.
Não com o crânio partido em
dois hemis-
férios
côncavos, conchas azuis da ba-
lança.
Duas crateras na areia fofa e
balofa,
de um chão de cal e estopa;
não.
Matar Deus que está em nós sui-
cidando-nos
será irmos muito além do nos-
so alvo
já que Ele só existe em nós
por nossa culpa.
Criado pelo Homem que o nutre
a suor e sangue.
Necessidade de explicação
a quem
somos e fomos.
Seríamos uns suicidas de palha.
Palhaços.
Sem deixar sequer na cinza um
bilhete
ou na pedra, gravado, o fóssil
de quem somos e fomos
uns futuricidas,
mais do que
suicidas.
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 24/02/2016
1
Ícaro morreu,
não por voar
junto ao Sol
mas de obsoleto
pelos robôs levado
em seu caixão preto
os mitos de hoje
conversam comigo na
rua.
Convidam-me a assis-
tir a Antonioni no
cinema
em plena iconosfera.
Tudo o que foi
ontem é
outra era.
2
No Jardim Zoológico
uma Lua presa
numa enorme jaula
de vidro.
Com todas
as crateras
à mostra
para
visitação
pública.
Tudo o que foi
ontem é
outra era.
De “Os Sobreviventes”
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 24/02/2016
I
Homem
em Adão.
Homem
em Cristo.
Homem
em globo.
II
como salvar
Deus?
nós faremos
d’Ele
novamente o
Autor de
tudo:
do peixe, da
ave, da
cobra,
da maçã,
do sapo, do
rouxinol
do sol.
O
obrigaremos
contudo
a suar san-
gue conosco,
na guerra,
na fome
na peste
na
terra suja;
a engolir
fogo
como nós,
no circo
queimando
boca
e estômago.
Um Deus
que nos
socorra.
Que não fuja;
que morra
em nós.
Quando
qualquer
de nós
morra.
À semelhança
de qualquer
de nós.
Deus mal-me-
quer
Deus bem-me-
quer
)horizontal
vertical(
no leito
na forca
ou num
batiscafo.
III
Um Deus
de cabeça
pra baixo
Morcego
pendurado
no teto
da igreja.
Um Deus
antiazul.
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016
1
“Cristo, terá sido
em vão teu sacri-
fício?
vê, o sangue escorre,
acre, no massacre
das ruas.”
Cristo espalmou a
mão
cobrindo os olhos
horizontalmente
pra não ver
a destruição
do ser
2
“Cristo,
vê os pequeninos
que tanto amaste
agora garotos
nos becos
como ratos dentro
de sapatos
rotos.”
Cristo escondeu,
de novo, a face,
como se chorasse
não querendo
que o vissem
chorar.
Gramática visual
a de Cristo;
“Não ver
é não ser visto.“
3
“Cristo,
ouve a imprecação
que sai da boca
dos famintos,
dos nus,
caídos na sarjeta
fria por onde
ninguém passa
mesmo por graça.”
Cristo se mantém
mudo
cotovelo ossudo
posto
em ângulo agudo
ocultando as rugas
do rosto.
Mudo, dizia tudo
cobrindo o olhar
verde
(Ver – ser cúmplice
Não ver – igual
a não ser visto.
Gramática visual
de Cristo)
4
Como se dissesse:
“Pudesse, arranca-
ria os olhos pelo
vídeo
(como Édipo)
à hora dos robôs
regougando
invadirem a furna-
urna-noturna
prá morte dupla:
(o suicídio/
deicídio)
“Que restará
do ‘amai-vos
uns aos outros’?
Só os laivos nos
lábios
dos que se beijam
hoje
de coração trocado.”
“Desço a persiana
da pálpebra
mas fica incendia-
do em mim o olho
d’alva interior
vendo tudo,”
“Deus e o Homem
comidos pelo fogo
de fulgorídeo
no mesmo ato
exato,
execrando.”
5
Nisto Cristo
parou de falar
vendando o rosto
e a barba
já hirsuta
braço em ângulo
agudo
sobre o olhar
verde.
Já fora do ar.
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016
Existe tudo porque existo.
Há porque vemos.
(Fernando Pessoa)
Para que o mundo exista, existimos.
Pois seja.
Sem os nossos olhos, sem o que somos,
que adiantaria haver mundo?
Seria a árvore dos dourados pomos, etc.
O que é ignorado não existe.
O que é eterno também não existe.
A eternidade é uma forma de não existência.
Ao menos para nós o mundo não existiria
se não fosse existirmos.
Para mim, por exemplo, o mundo existe
porque ora estou alegre, ora sou triste.
Mas no fim vem a morte e… nos leva.
O seu poder é bem maior que o nosso;
porque é o da treva, e o nosso, esse não passa
de só dar existência ao que claramente já existe,
ao que só existe em razão dos nossos frágeis sentidos.
Que podemos ouvir, olhar, tocar, etc.
Agora mesmo, não faz senão um minuto,
no banco do jardim… que foi? Um homem suicidou-se.
O dedo lhe está preso, ainda, no gatilho,
rígido como uma hora certa. Sem nenhum
arrependimento.
Muita gente reunida em redor do seu corpo.
Muitos rostos examinando o seu rosto.
Mas ele suicidou-se, apenas? Não é, isso, bem menos
do que ele fez?
Ele desceu violentamente a cortina da noite
sobre nossos rostos, que só continuam vivos
para nós.
O seu corpo ali está, presente a todos,
mas nós — que somos todos — já estamos ausentes.
Ele nos suprimiu.
Ele nos destruiu também, simbolicamente.
Que destruir a si mesmo importou, para ele,
em destruir o mundo físico,
que só existia em razão dos seus frágeis sentidos
principalmente em razão dos seus olhos, etc.
Como dizer-se apenas: suicidou-se?
Ele desceu violentamente a cortina da noite.
Jogou ao chão a sua própria estátua.
Não aceitou a explicação da vida.
Fez qualquer coisa de mais belo e mais monstruoso.
Pois nem Deus (e Deus é Deus)
conseguirá, jamais, fazer o que ele fez: suicidar-se.
Ah, ele conserva ainda
na mão a arma com que apagou o sol e as estrelas.
Como dizer-se apenas: suicidou-se?
Agora virá a mulher e essa mulher o abraçará loucamente.
A esposa, e um anjo, a filha, lhe dirão palavras estranguladas.
Virá a ambulância. Alguém já chamou a polícia,
e haverá autópsia, etc.
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 22/02/2016
O seu corpo tão alvo, o seu corpo presente
é a coisa mais ausente, é uma ilusão
pensar que a rosa ou o fruto já colhidos
ainda soluçam desprendidos da haste.
O seu corpo é já um fruto neutro e frio.
Não obstante jovem, tem a mesma idade
de todos os que morreram antes, ou mesmo
na mais remota origem babilônica.
Todos os mortos tem a mesma idade.
Que me adiante chorar sobre a argila ainda tenra,
que esfriou não faz, senão, apenas um minuto?
Todo cadáver é uma coisa já longínqua.
Embora tenha esfriado apenas há um minuto
é algo que regressou súbita e automaticamente
à noite que existiu antes de Deus.
Todo cadáver é anterior ao sol e a Deus.
Mas por que sofro tanto? Não será justamente
por estar sendo vista, ser um corpo presente
aquela que voltou ao nunca ter nascido
e me deixou ausente, eternamente?
Aquela que voltou à fonte, ao horizonte
de quando antes de tudo e me deixou ausente
para que eu vá matando em mim sua presença
até morrê-la quanto o dia morre a estrela?
Se eu fosse Júpiter me converteria
em chuva de ouro sobre sua imagem.
Se eu fosse Glauco me transformaria
num peixe azul no índico da imemória.
De “João Torto e a Fábula”, nova edição, 1963, Livraria José Olympio Editora
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 21/02/2016
O olho de Polifemo
já depois de arrancado
ao gigante bêbado,
foi posto,
entre rosas carnosas
e lírios agudos,
sobre a alva mesa.
Tinha ainda a pupila
acesa.
E os doze convivas,
— doze fomes irmãs, —
todos ao mesmo tempo,
simultâneos como
figuras de uma orquestra,
vieram, graves, comer
o olho
de Polifemo,
em dourado molho.
Eram só matéria
exigindo a matéria.
Bocas rubras de vinho
num banquete com algo
de mágico
e de antropofágico.
Ah, era tanta a fome
que nem perceberam,
um minuto após,
pousar-lhes sobre o ombro
a mão de um anjo torto
que os fez diferentes
do que eram,
no banquete feroz.
De modo
que se olhassem pra dentro
do seu próprio ser,
não se conheceriam:
“quem são?”
de tão desfigurados
pela deformação.
E ao mesmo tempo iguais
uns aos outros,
era como se olhassem
num espelho morto.
Tão iguais de rosto
que já não poderiam
distinguir quais deles
eram eles mesmos
(se todos
tinham um só rosto).
Todos deformados
pela angústia, desnudos,
reduzidos a ângulos
agudos,
no instante decomposto
em que a fome era o fruto
do absoluto.
Fruto do chão bruto.
Fruto que tinha o gosto
do suor e da lágrima
que a língua bebe ao rosto.
Mas, o olho redondo,
comido alegremente,
entre rosas carnosas
e lírios agudos,
em campo de prata
(Pã ergue um brinde a Ulisses)
como comer se come
numa mesa de doidos,
continuou olhando
a todos.
Como se olhasse um bando
de doidos.
Não lhes matou a fome.
Então, na manhã clara,
como enormes figuras,
iguais e repetidas
de um baralho humano,
os doze convivas
repentinos e feéricos,
todos ao mesmo tempo,
automaticamente,
comeram — verdes potros —
uns os olhos dos outros.
REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 21/02/2016