Repara nos velhos. Dementes, doridos, restos de casas. Vivem agora a lepra de todos nós. Não lhes chegamos. Tresandam. Esquecem. Apoderam-se do nada. E nós, capitosos, brindamos com o vinho que também eles sorveram, desdenhando a morte que, amarga como a nossa indiferença, haveremos de provar.
REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 16/07/2019
Repara nos velhos.
Dementes, doridos, restos de casas.
Vivem agora a lepra
de todos nós.
Não lhes chegamos.
Tresandam.
Esquecem.
Apoderam-se do nada.
E nós, capitosos,
brindamos com o vinho
que também eles
sorveram,
desdenhando a morte
que, amarga como
a nossa indiferença,
haveremos
de provar.
Durante essa tua natação de fera oculta há um papiro que se desdobra na minha boca e nunca o futuro teve o sabor de palavras tão sobejamente pronunciadas família rapaz umbigo palavras com que se poderia redigir tão pouca coisa se não fosse a reinvenção da tua chegada inscrita no mundo como pedra preciosa que não é pedra antes um modo inalienável de reluzir pelos braços fora
Sei que haverás de te deslocar timidamente por estas ruas e prédios que bocejam dos nomes que lhes deram e que contigo terão uma razão mais forte para conspirarem na longa malha inanimada em que se decidem os bichos a que chamamos homens e que tão pobremente os têm habitado — garanto-te — à excepção de uma ou outra carne mais obstinada em escapar à bala comum
Para tudo isso terás tempo ainda que rapidamente te dês conta de que tudo é já tão tarde eu próprio lamento o tempo que esperei e que não terei para testemunhar o incêndio dos teus olhos o fruto magro que hás-de roer noite dentro nalgum bairro de pormenor quando o escasso amor que te deram for o alimento oportuno de um amor mais desenvolto — estranho comércio, sim — o tempo que não terei para nos lançarmos os dois ao mar nalguma noite desesperada partilhando o sal de tudo largar esse gosto tão raro tão sigilosamente próximo
Perdoa a falta de graça o tom melancólico a guerra mas é que vivo numa época que como muitas antes dela repetiu os subsídios ao nojo bateu o sangue em castelo para se levar ao forno da ambição deu uma sova às pequenas respirações — sim, intersticiais, subtis, difíceis — sem as quais um corpo é apenas um estorvo à sua própria morte percebes isso? um estorvo à sua própria morte
Porque essas finuras de que te falo são sem dúvida a única ousadia frente à inevitável conflagração do espaço — perdoa uma vez mais, eu reformulo — tudo isto que ainda não vês mas verás tudo isto que ainda não tocas mas tocarás não durará mais do que a sua própria experiência e é essa a única lei e é esse o único hino país tão desabitado que festejas cada desembarque como se te trouxessem oceano
Se a eternidade fosse um espelho o que mostraria? Isto agora porque é aqui que vive a luz e é esta a paisagem que nenhum deus pode apagar senão à custa da sua fome não receies por isso deus nenhum nem eternidade nenhuma a tua carne é o único tesouro — sei-o enquanto nadas — digno de ser embrulhado pela treva
II
Sem saber ainda os traços do teu rosto sei que me reconhecerei em ti não fisionomicamente mas no que é comum a todos os corpos esses tropeços primeiros que a memória não segura para que nada possa ser comparado com o júbilo da encarnação com a extrema vulnerabilidade capaz de concentrar em si as apostas circundantes
Gostaria no entanto de te receber num outro lugar não neste boi tombado que dá pelo nome de vinte e um peso morto arrastado pelos cornos apenas para que não o devassem as moscas — aprenderás a amar também o trabalho alquímico das moscas a sua centralidade nas salas como se pudessem medir todo o espaço e concluir que é no meio — um outro lugar mais consentâneo com o uso dos dentes com a urgência de cuidar com as loucas passadas dos cães
Sinto já a força dos teus dedos sucintos em torno do meu polegar o calor que esbanjamos em cada gesto na imensa consanguinidade das coisas vivas não há como fugir-lhe vamos de mãos dadas com o que nos rodeia em ininterrupta dedicatória os dados são lançados e apanhados sem tocar a mesa e a sorte sai conforme a sorte que se der pois de tudo se sabe apenas a medida da sua entrega
De ti carregarei até ao fim o anúncio cardíaco em pleno silêncio a ruína de uma espécie de solidão que se julgava inamovível e que a correnteza dos teus tambores os cascos do teu nome incógnito esboroaram num segundo para no seu lugar instaurarem uma costura que nos entrança pelos pulmões o número 3 deitado / como barca frente às vagas a equipagem para o futuro
Ouço-te nadar sempre nestes meus dias de náufrago posto em estrela sobre as águas e assim estarás tu também no teu elemento os dois talvez quietos e ser ela quem nos encurta aos dois para o seu ventre alucinado a mulher que transpôs comigo o limiar do cinismo a angústia do salão espelhado a tua mãe
III
Os momentos em que a claridade é um capricho dos eléctricos e os corpos se demoram nas praças como se de fato houvesse alma e devêssemos salva-la da crueldade e do tédio são esses os momentos que te desejo nalguma cidade futura nalguma encruzilhada de gente mas sobretudo que haja eléctricos ainda pois é à janela levantada de um eléctrico que a realidade é premente e o vento toda história do mundo.
Vem isto a propósito do cansaço em que ando e que nada tem a ver com a matéria da existência – da qual és ainda magma – antes com este logro quotidiano em que um homem e uma mulher se esfalfam para manter à tona a ampulheta instável dos seus nomes quando esse punhado de areia subtraído à erosão dos deuses merecia o sopro pleno de um dia sem rodeios um batismo mais vasto e súbito que não prendesse cada coisa aos seus próprios pés
Se algo tiveres absolutamente de fazer que seja a travessia das cerradas cordilheiras interiores em que acabarás por tropeçar não que sejas empurrado para lá mas porque vivem numa espécie de maturação do sangue que mais do que a pretensa inclinação dos teus músculos deverás escutar os animais noturnos as febres a tua solidão pactuada com a longínqua saga dos que se despenham em busca de um estrondo musical pequeníssima nota reverberada entre pálpebras que só os escafandristas puxam para a altura do olhar
Ter dos teus lábios essa sílaba nítida de língua nenhuma mera articulação de uma água antiga que me pende sobre a cabeça essa a espada que me falta e que me permitirá afugentar a angústia da pouca vida que sempre nos pertence recuando aos vocábulos indefesos com que a paisagem nos entra pela garganta e nos alaga os pulmões
Ninguém sabe ao certo com que esmero será capaz de arrombar a frágil película das horas e pilhar esses instantes de fraternidade com o espanto de existir porque é verdadeiramente digno de pasmo que uma coisa se precipite contra a lápide da sua própria duração e se ache na veleidade de dizer que está aqui ponto de chegada na atribulada imaginação do espaço
IV
Que não te enganem os que compram as horas por atacado para do teu suor extraírem a bandeira de um país que nunca será o da atenção que nunca será o da morada mas sempre e sempre o território homeopático da extinção em que os troféus são joelhos vergados à condição de cera para os soalhos do progresso cujo verdadeiro nome é despovoamento
Vender-te-ão o conforto a perseverança o brio como se tivéssemos por fito a acumulação do tempo sem o fruirmos boca a boca desesperadamente garantir o futuro dir-te-ão sem repararem na estupidez do repto pois que poder temos nós sobre as válvulas biológicas do nosso prazo para nos arrogarmos a garantir o que quer que seja quanto mais o sumo fruto da inexistência esse futuro-cano-enfiado-na-boca para ser disparado sem falta de manhã e ao deitar
Em volta sucedem-se clarões e abismos inóspitos os elementos torcem-se na pesca à linha dos lugares fundamentais há uma convulsão de panoramas para o brevíssimo turismo dos olhos mas o importante é a matemática mesquinha do sangue que furtamos uns aos outros a medalha de carne pútrida com que esperamos aparecer na fotografia da época
Que se foda a época digo-te já que se foda a sépia dos futuros eu quero aparecer no dia do teu nascimento desarmado como uma árvore sem outra missão que não amparar-te o susto e dizer-te baixinho bem-vindo ao continente dos frágeis podes parar de nadar