Sharon Olds – Tudo

A maioria de nós jamais foi concebida.
Muitos de nós nunca nascemos —
sobrevivemos em um mar solitário por horas,
semanas, com membros extras ou ausentes,
ou segurando nos braços nossa pobre segunda cabeça,
que brota de nosso peito. E muitos de nós,
frutos do mar em seu caule, sonhando com algas
e búzios, somos eliminados em nossos primeiros meses.
E alguns que nascem, vivem apenas por minutos,
outros, por dois, três ou quatro verões,
e quando partem, tudo
se vai — a terra, o firmamento —
e o amor permanece, onde nada há, e busca.

Trad.: Nelson Santander

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Everything

Most of us are never conceived.
Many of us are never born —
we live in a private ocean for hours,
weeks, with our extra or missing limbs,
or holding our poor second head,
growing from our chest, in our arms. And many of us,
sea-fruit on its stem, dreaming kelp
and whelk, are culled in our early months.
And some who are born live only for minutes,
others for two, or for three, summers,
or four, and when they go, everything
goes — the earth, the firmament —
and love stays, where nothing is, and seeks.

Sharon Olds – Volto a maio de 1937

Vejo-os parados nos portões solenes de suas faculdades,
vejo meu pai caminhando
sob o ocre arco de arenito, os
azulejos vermelhos brilhando como placas
de sangue atrás de sua cabeça,
vejo minha mãe carregando alguns livros leves
parada ao pé do pilar feito de pequenos tijolos,
o portão de ferro fundido ainda aberto atrás dela, as
pontas afiadas brilhando no ar de maio,
eles estão prestes a se formar, estão prestes a se casar,
eles são crianças, são tolos, tudo o que sabem é que são
inocentes, que nunca machucariam ninguém.
Quero ir até eles e dizer: Parem,
não façam isso — ela é a mulher errada,
ele é o homem errado, vocês vão fazer coisas
que nem imaginam que fariam,
vão fazer coisas ruins com seus filhos,
vão sofrer de maneiras das quais nunca ouviram falar,
vocês vão desejar a morte. Quero ir
até eles, sob a luz do sol de fim de maio, e dizer isso,
o belo e ávido rosto dela se voltando para mim,
seu frágil corpo belo e puro,
o belo e arrogante rosto dele se voltando para mim,
seu frágil corpo belo e puro,
mas não vou. Eu quero viver. Eu
os pego como bonecos de papel masculino
e feminino e os esfrego na altura
da cintura como lascas de sílex, como se
quisesse arrancar faísca deles, e digo:
Façam o que irão fazer, e eu contarei essa história.

Trad.: Nelson Santander

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I Go Back to May 1937

I see them standing at the formal gates of their colleges,
I see my father strolling out
under the ochre sandstone arch, the
red tiles glinting like bent
plates of blood behind his head, I
see my mother with a few light books at her hip
standing at the pillar made of tiny bricks,
the wrought-iron gate still open behind her, its
sword-tips aglow in the May air,
they are about to graduate, they are about to get married,
they are kids, they are dumb, all they know is they are
innocent, they would never hurt anybody.
I want to go up to them and say Stop,
don’t do it—she’s the wrong woman,
he’s the wrong man, you are going to do things
you cannot imagine you would ever do,
you are going to do bad things to children,
you are going to suffer in ways you have not heard of,
you are going to want to die. I want to go
up to them there in the late May sunlight and say it,
her hungry pretty face turning to me,
her pitiful beautiful untouched body,
his arrogant handsome face turning to me,
his pitiful beautiful untouched body,
but I don’t do it. I want to live. I
take them up like the male and female
paper dolls and bang them together
at the hips, like chips of flint, as if to
strike sparks from them, I say
Do what you are going to do, and I will tell about it.

Sharon Olds – Diretamente

E então, em um final de tarde,
eu compreendi: o mal que meu pai
nos fez está diminuindo. Nunca imaginei
que isso pudesse acontecer, achava que esse mal fosse mais forte,
como o mal divino — inundação, nascimento sem
olhos, com montes de tecido, sem retina, sem
pupila, do jeito que meu pai no sofá não
parecia simplesmente não usar os olhos,
mas sim não os ter, ou ter objetos em vez
de olhos — broches de vestido à Jocasta.
Mas ele não foi odiado, então não nos odiava,
apenas nos desprezava, e isso está passando.
Meu filho e minha filha estão crescidos, e estão bem
quase que por milagre. A tarde tem a
qualidade de um milagre, os estorninhos estão todos voltados
para o oeste, para o túmulo dele. Aproximo-me da janela
como se fosse abri-la, e sussurro:
o mal do meu pai está se dissipando. Então,
penso que ele ficaria contente em ouvir isso
diretamente de mim,

então, venho até onde você está, os ossos
acomodados sob a trama orvalhada
do musgo esverdeado de Northwoods, como o cabelo
emaranhado da amada. Venho aqui até você
porque este é o seu lar: seu corpo já desfeito,
despedaçado na terra, mantendo
sua solene e inútil beleza.

Trad.: Nelson Santander

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Directly

Then, one late afternoon,
I understand: the harm my father
did us is receding. I never thought
it would happen, I thought his harm was stronger than that,
like God’s harm—flood, or birth without
eyes, with mounds of tissue, no retina, no
pupil, the way my father on the couch did not
seem not to be using eyes
but not to have them, or to have objects
for eyes—Jocastal dress-brooches.
But he had not been hated, so he did not hate us,
just scorned us, and it is wearing off.
My son and daughter are grown, they are well
as if by some miracle. The afternoon has a
quality of miracle, the starlings all facing
the west, his grave. I come to the window
as if to open it, and whisper,
My father’s harm is fading. Then,
I think that he would be glad to hear it
directly from me,

so I come to where you are, bone
settled under the dewed tangle
of the blackish Northwoods moss like the crossroads
hair of a beloved. I come to you here
because it is home: your done-with body
broken back down into earth, holding
its solemn incapable beauty.

Sharon Olds — Amor verdadeiro

No meio da noite, quando nos levantamos
depois de fazer amor, nos olhamos
em completa sintonia, sabemos plenamente
o que o outro tem feito. Ligados um ao outro
como alpinistas descendo uma montanha,
atados pelo vínculo da sala de partos,
vagamos pelo corredor até o banheiro, mal
conseguindo andar, cambaleio pelo ar granulado
e sem sombra, e de olhos fechados
sei onde você está, unidos por enormes
fios invisíveis, nossos sexos
silenciados, exaustos, esmagados, o corpo
inteiro um sexo — certamente este
é o momento mais abençoado de minha vida,
nossos filhos dormindo em suas camas, cada destino
como um veio mineral duradouro
ainda não descoberto. Na noite,
sento-me no vaso sanitário, você em algum lugar no quarto,
abro a janela e a neve caiu em um
monte íngreme contra a vidraça,
olho para cima, para ela,
uma parede de cristais congelados, silenciosa
e cintilante, chamo-o discretamente,
você vem, segura minha mão e eu digo
que não consigo ver além dela. Não consigo ver além dela.

Trad.: Nelson Santander

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True love

In the middle of the night, when we get up
after making love, we look at each other in
complete friendship, we know so fully
what the other has been doing. Bound to each other
like mountaineers coming down from a mountain,
bound with the tie of the delivery-room,
we wander down the hall to the bathroom, I can
hardly walk, I wobble through the granular
shadowless air, I know where you are
with my eyes closed, we are bound to each other
with huge invisible threads, our sexes
muted, exhausted, crushed, the whole
body a sex — surely this
is the most blessed time of my life,
our children asleep in their beds, each fate
like a vein of abiding mineral
not discovered yet. I sit
on the toilet in the night, you are somewhere in the room,
I open the window and snow has fallen in a
steep drift, against the pane, I
look up, into it,
a wall of cold crystals, silent
and glistening, I quietly call to you
and you come and hold my hand and I say
I cannot see beyond it. I cannot see beyond it.

Sharon Olds – Poema tardio para meu pai

De repente, você me veio à mente
como uma criança naquela casa, os cômodos escuros
e a lareira acesa com o homem diante dela,
silente. Você se movia pelo ar pesado
em sua beleza física, um menino de sete anos,
indefeso, esperto, havia coisas que o homem
fazia perto de você, e ele era seu pai,
o molde que o formou. Lá embaixo, no
porão, os barris de maçãs doces,
colhidas no topo da árvore, apodreciam e
apodreciam, e além da porta do porão
o riacho fluía e fluía, e algo não
foi dado a você, ou algo com que
você nasceu lhe foi tirado, de modo que
mesmo aos 30 e 40 anos você aplicava o
remédio oleoso nos lábios
todas as noites, a poção para ajuda-lo
a cair inconsciente. Sempre pensei que o
problema era o que você fez conosco
quando adulto, mas então me lembrei daquela
criança sendo formada diante do fogo, dos
ossos delicados dentro de sua alma,
quebrados como ramos verdes, os pequenos
tendões que mantêm o coração no lugar
rompidos. E o que fizeram com você,
você não fez comigo. Quando o amo agora,
gosto de pensar que estou dando meu amor
diretamente àquele menino na sala escaldante,
como se pudesse alcançá-lo a tempo.

Trad.: Nelson Santander

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Late Poem to My Father

Suddenly I thought of you
as a child in that house, the unlit rooms
and the hot fireplace with the man in front of it,
silent. You moved through the heavy air
in your physical beauty, a boy of seven,
helpless, smart, there were things the man
did near you, and he was your father,
the mold by which you were made. Down in the
cellar, the barrels of sweet apples,
picked at their peak from the tree, rotted and
rotted, and past the cellar door
the creek ran and ran, and something was
not given to you, or something was
taken from you that you were born with, so that
even at 30 and 40 you set the
oily medicine to your lips
every night, the poison to help you
drop down unconscious. I always thought the
point was what you did to us
as a grown man, but then I remembered that
child being formed in front of the fire, the
tiny bones inside his soul
twisted in greenstick fractures, the small
tendons that hold the heart in place
snapped. And what they did to you
you did not do to me. When I love you now,
I like to think I am giving my love
drectly to that boy in the fiery room,
as if it could reach him in time.

Sharon Olds — Cemitério de Leningrado, Inverno de 1941

Naquele inverno, os mortos não puderam ser enterrados.
O solo estava congelado, os coveiros fracos de fome,
a madeira dos caixões era usada como combustível. Por isso, eles foram cobertos com algo
e levados em um trenó de criança para o cemitério,
no ar abaixo de zero. Eles jaziam no solo,
alguns envoltos em um pano escuro
amarrado com corda como a bola de raízes da árvore
que espera para ser plantada; outros estavam enrolados em lençóis,
suas formas pálidas, cobertas de gaze, cônicas,
rígidas como casulos que se abrirão ao meio
quando a nova vida dentro deles estiver pronta;
mas a maioria jazia como cadáveres, suas coberturas
se desfazendo, as panturrilhas nuas
duras como feixes de madeira espalhados
por debaixo de um manto, uma mão estendida
sem sinal de paz, ansiando voltar
até mesmo para o pão feito de cola e serragem,
até mesmo para o inverno glacial, e o cerco.

Trad.: Nelson Santander

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Leningrad Cemetery, Winter of 1941

That winter, the dead could not be buried.
The ground was frozen, the gravediggers weak from hunger,
the coffin wood used for fuel. So they were covered with something
and taken on a child’s sled to the cemetery
in the sub-zero air. They lay on the soil,
some of them wrapped in dark cloth
bound with rope like the tree’s ball of roots
when it waits to be planted; others wound in sheets,
their pale, gauze, tapered shapes
stiff as cocoons that will split down the center
when the new life inside is prepared;
but most lay like corpses, their coverings
coming undone, naked calves
hard as corded wood spilling
from under a cloak, a hand reaching out
with no sign of peace, wanting to come back
even to the bread made of glue and sawdust,
even to the icy winter, and the siege.

Sharon Olds – Depois

Depois que o urso de 250 quilos passa por mim,
da esquerda para a direita, a apenas um metro e meio de distância,
percebo que agora começo a respirar pesadamente
no meio dos meus doze degraus — então eu me
deito na cama e ofego por um tempo.
E o tremor se intensifica, de modo que, quando estou cozinhando,
literalmente misturo alguns ingredientes às pressas,
sal e açúcar e arroz cru espalhados pelo chão.
Os equipamentos que me mantêm viva estão se deteriorando,
quando fecho a tela, vaza gel de osso sobre as teclas,
e a pele de meus antebraços pende como riachos de seda molhada.
Acho que pensei que poderia ser poupada do extremo da morte.
Em uma de suas últimas noites, meu querido1 começou a cantarolar,
canções loucas, enquanto seu cérebro se apagava — selvagens e terríveis,
mas engraçadas também, acho que pensei que talvez
vivesse mais 100 anos para descrever esses solos.
E Galway2 — talvez eu continuasse cantando para ele, já que ele não
podia mais.
Mas quando vi, na última foto, a sobrancelha de Willy
ainda arqueada como se estivesse caçando, atenta a algo distante,
um canino curvo, um cardo-mariano em sua boca,
e os lençóis amarrados em sua cintura em um
nó poderoso,
a cabeça de Willy emergindo como um encaracolado buquê de flores esbranquiçadas,
minha boca balbuciou e meus olhos jorraram
como se fossem a aquarela do jarro azul descansando em seu
lençol fúnebre
com o “Obrigado” em azul — Willy em seu cenário
de nuvens se acomodando na montanha.
Um dia, minhas lágrimas se esgotarão —
por ora, é uma honra derramá-las por Willy e Bwindi
e Galway e Charlie. E talvez, se eu tiver sorte,
Bobbie e Catherine possam me envolver para o meu dia de banho,
me cobrir com panos e me deitar
na manjedoura da terra, com Carl, e Hazel.

Trad.: Nelson Santander

N. do. T.:

1. A autora se refere ao seu parceiro por mais de duas décadas, Carl Wallman, que faleceu de câncer em 2020 e a quem é dedicada toda a parte dois da seção “Elegies”, de seu último livro, Balladz, do qual este poema foi retirado;

2. Galway Kinnell, poeta irlandês, amigo e mentor da autora, que morreu em 2014.

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After

After the quarter-ton bear walks past me,
left to right, six feet away,
I notice that now I start breathing heavily
halfway up my dozen stairs—then I
lie on the bed and pant for a while.
And the tremor is worse, so that, when I’m cooking, I am
literally throwing a few ingredients together,
salt and sugar and raw rice on the floor around my feet.
My equipment for staying alive is wearing out,
my screen when I close it leaks bone-gel on the keys,
and the skin of my forearms hangs down in watered-silk rivulets.
I think I had thought I might be spared the extreme of dying.
On one of his last nights, my darling began caroling,
mad songs, as his brain was going—wild and terrible
but funny, too, I think I thought I might
live for 100 more years to describe those solos.
And Galway—maybe I would go on and on singing him since he no
longer could.
But when I saw, in the last portrait, Willy’s eyebrow
still cocked as if hunting, attentive to something at a distance,
one canine curved, a milk-thorn in his mouth,
and the bedlinen his body was wrapped in tied at the waist in a
powerful knot,
Willy’s head emerging as a curly off-white harvest bouquet.
My mouth warbled and my eyes poured
as if from the watercolor of the blue pitcher resting on his
winding-sheet
with the blue Thank You—Willy in his cloud
setting into the mountain.
Someday I will run out of tears—
they are honored now to be shedding for Willy and Bwindi,
and Galway and Charlie. And maybe, if I’m lucky,
Bobbie and Catherine might bundle me up for my wash-day,
wrap me in swaddling clothes and lay me
in the manger of the earth, with Carl, and Hazel.

Sharon Olds – As formas

Sempre tive a sensação de que minha mãe
morreria por nós, se atiraria em um incêndio
para nos tirar de lá, seus cabelos flamejando como
uma auréola, pularia na água, seu corpo
branco afundando e girando lentamente,
o astronauta com seu tubo cortado,
caindo
        na
             escuridão. Ela teria nos
coberto com seu corpo, empurraria seus
seios entre nossos peitos e a faca,
teria nos colocado no bolso de seu casaco
para nos proteger das chuvas. Em um desastre, 
uma mãe animal, ela teria morrido por nós,

mas na vida como era
ela tinha que se colocar
em primeiro lugar.
Ela tinha que fazer o que ele 
mandasse fazer com as crianças, ela tinha
que se proteger. Na guerra, ela teria
morrido por nós, eu digo que sim,
e eu sei: eu sou estudante da guerra,
dos fornos a gás, sufocamentos, facas,
afogamentos, queimaduras, de todas as formas
em que experimentei seu amor.

Trad.: Nelson Santander

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The Forms

I always had the feeling my mother would
die for us, jump into a fire
to pull us out, her hair burning like
a halo, jump into water, her white
body going down and turning slowly,
the astronaut whose hose is cut
falling
into
blackness. She would have
covered us with her body, thrust her
breasts between our chests and the knife,
slipped us into her coat pocket
outside the showers. In disaster, an animal
mother, she would have died for us,

but in life as it was
she had to put herself
first.
She had to do whatever he
told her to do to the children, she had to
protect herself. In war, she would have
died for us, I tell you she would,
and I know: I am a student of war,
of gas ovens, smothering, knives,
drowning, burning, all the forms
in which I have experienced her love.

Sharon Olds – Destino

Finalmente desisti e me tornei meu pai,
sua face oleosa e abatida, brilhando para
qualquer pessoa que eu olhasse, seus olhos castanhos-lodo
em meu rosto, cintilando como chão molhado em que
as coisas que amamos caíram,
e se perderam para sempre. Não mais tentei
não ter o mau hálito dele,
sua postura derrotada de fracasso, seu triste
sexo pendurado entre suas coxas, seu estômago
inchado e vazio. Entreguei-me
ao meu verdadeiro eu, encarei o mundo
através da sua perspectiva amarga, de sua visão acre e
turva, flutuei em suas lágrimas.
Vi o mundo inteiro brilhar
com o êxtase da sua dor, e eu
mesma, ele, eu, brilhei,
minhas porosas e oleosas bochechas, glaucas
como tulipas, a rica textura das pétalas,
o bulbo oculto no solo escuro,
preso, enraizado, seguro de seu lugar de direito.

Trad.: Nelson Santander

Fate

Finally I just gave up and became my father,
his greased, defeated face shining toward
anyone I looked at, his mud-brown eyes
in my face, glistening like wet ground that
things you love have fallen onto
and been lost for good. I stopped trying
not to have his bad breath,
his slumped posture of failure, his sad
sex dangling on his thigh, his stomach
swollen and empty. I gave in
to my true self, I faced the world
through his sour mash, his stained acrid
vision, I floated out on his tears.
I saw the whole world shining
with the ecstasy of his grief, and I
myself, he, I, shined,
my oiled porous cheeks glaucous
as tulips, the rich smear of the petal,
the bulb hidden in the dark soil,
stuck, impacted, sure of its rightful place.

Sharon Olds – Minha mão

Quando olho para a minha mão, e para o dorso do meu pulso,
brilhando com o petrolato que
esfreguei em suas fissuras — óleo mineral,
ceresina, lanolina, pantenol, glicerina,
bisabolol, vejo as rugas
finas, muitas formando losangos,
algumas delas longas cicatrizes vacilantes —
isso me parece comovente e afortunado. E eu gosto
das veias salientes do dorso da minha mão.
Faço parte de um casal. Meu parceiro está em
um traje de linho, numa caixa de pinho,
em New Hampshire — em uma terra consagrada no cemitério
judeu. Eu lhe digo, Carl1,
meu querido, está tudo bem, seu tecido
se dissolverá na terra quando chegar a primavera,
está tudo bem, você não pode mudar a forma
chocante do seu corpo que amo, você é inocente
na morte, você é bom.
Nós somos um casal. Lembra quando eu subi em sua cama
estreita de hospital, quando você mal conseguia se mexer,
e assim que me encaixei ao
seu lado, como a última peça de um quebra-cabeça,
nós dois desmaiamos de sono? Quando dirigi para o norte,
para fora de uma cidade de peste1, meu carro —
o seu carro, que você me vendeu pelo preço de tabela —
estava cheio de cadernos nos quais nossas histórias
são mantidas, equilibradas em sua lenta dança
para cima e para baixo. Minha epiderme
parece bonita, para mim, esta noite, frágil
e tangível, como córregos na areia onde a água
ondeia. Gostei de conversar com você sobre a
coroa de ouro que o rabino da internet
disse que você usaria depois de morto,
no banquete. E agora amo ver que
na teia da pele brilhante do meu pulso, eu já
faço parte de ti, suave e
permanente é a noite.

Trad.: Nelson Santander

  1. Carl Wallman, companheiro de longa data de Sharon Olds que morreu em fevereiro de 2020, poucas semanas antes da pandemia de Covid-19 explodir.
  2. Balladz, o livro mais recente da poeta, publicado no ano passado, e do qual foi extraído este poema, foi escrito em grande parte durante a quarentena de Covid-19 . Essa é a “peste” à qual ela se refere. 

My hand

When I look at my hand, and at the back of my wrist,
gleaming with the petrolatum which I’ve
rubbed into its chap—mineral oil,
ceresin, lanolin, panthenol, glycerin,
bisabolol, I see the fine
wrinkles, many making diamond shapes,
some of them long cicatrice wobbles—
it looks touching to me, and lucky. And I like
the veins which bulge up from the back of my hand.
I’m a member of a couple. My partner is in
a linen shift, a pine box,
a New Hampshire earth—sacred in the Jewish
cemetery. I say to you, Carl,
my darling, it’s O.K. your tissue
will melt with the dirt when spring comes,
it’s O.K. you cannot change the shock-
shape of your body I love, you are innocent
of death, you are good.
We are a couple. Remember when I climbed into your narrow
hospice bed, when you could hardly move,
and as soon as I fitted myself in
along you, like the last piece of a puzzle,
we both passed out into sleep. When I drove north,
out of a city of plague, my car—
your car which you sold me for the list price—
was packed with notebooks in which our stories
are held, balanced in their slow dance
up and down and up. My epidermis
looks pretty, to me, tonight, frail
and real, like rills in sand which water
rippled. I liked to talk with you about the
golden crown the internet rabbi
said you would be wearing, after death,
at the feast. And I love, now, seeing
in the web of my glistening wrist-skin that I am
already part with thee, tender and
permanent is the night.