Paulo Henriques Britto – de “Vers de circonstance”

I. Imunidade de Rebanho

A estupidez é sua própria recompensa.
Graças a ela, o mundo faz sentido,
um só, que é fácil de identificar.
E só o fácil satisfaz a quem não pensa.

Pensar é coisa trabalhosa. A ignorância
é o sumo bem dos cidadãos de bem,
é a verdadeira marca dos eleitos.
Ter sucesso é não ter que saber. Saber cansa,

e o objetivo central de qualquer existência
só pode ser não se cansar. Olhai
as vacas do campo: não lhes faz falta a ciência,

pastam em plena bem-aventurança,
sem que nenhuma antevisão do matadouro
perturbe a santa paz da ruminança.

REPUBLICAÇÃO: poema originalmente publicado na página em 10/07/2020

Paulo Henriques Britto – O aqualouco

A verdadeira diferença
só se sente depois do frio.
Antes é só um salto, um mergulho imprudente,
como se eternidade fosse água gelada,
como se o nada não fosse mais que um rio.

Depois somem as palavras fáceis
(“eternidade” etc.; v. acima),
fica só o fundamental:
o vômito, o medo, o adeus,
a vontade de assassinar todos os recém-nascidos
do Egito, como se alguém tivesse culpa de uma coisa
que afinal foi você mesmo quem escolheu.

Depois você é obrigado a aceitar.
Não adianta pressa. Não há mais compromissos,
promessas, fiado, fé. Não.
É só um entregar-se às circunstâncias,
submeter-se às exigências da matéria,
dos elementos, “causalidade”, “aceitação”
etc., como antes. E sempre.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 14/10/2019

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Paulo Henriques Britto – À margem do Douro

Não espero nada, e já me satisfaço
com a consciência de ainda estar em mim
e não de volta ao nada de onde vim.
Por ora, ao menos, ainda ocupo espaço,
junto a uma mesa no Cais da Ribeira;
permito-me, sem culpa, desfrutar
de pão, e queijo, e vinho, e vista, e ar,
todo o entorno da minha cadeira.
Que os dias que me restam não me tragam
apenas a miséria de contá-los
pra ao fim ver que as contas não fecham. Peço
demais? Eu, que não sou desses que tragam
a vida num só gole e no gargalo,
sem ter nem mesmo perguntado o preço.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 26/01/2019

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Paulo Henriques Britto – Lacrimæ rerum

É o lamento das coisas,
a desdita da matéria.
Não tem nada a ver conosco,
com nossa breve miséria,

nosso orgulho de organismo.
É uma questão de moléculas,
que antecede a biologia
por coisa de muitos séculos.

Diante dessa dor arcana
nosso entendimento pasma.
Nem tudo está a vosso alcance,
ó seres de protoplasma.

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Paulo Henriques Britto – Da irresolução

Por não se estar preparado
perde-se a vida inteira.
A preparação, porém,
pra ser completa e certeira,

exigiria no mínimo
uma existência e meia.
Compreende-se, portanto,
aquele que titubeia

ao se ver face a face
com tamanho compromisso
e termina decidindo
viver mesmo de improviso.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 24/03/2019

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Paulo Henriques Britto – Uma nova teoria de tudo

Todas as coisas que existem no mundo
fazem sentido. Senão não teria
sentido elas serem. Ou estarem. Tudo
mais depende desse princípio. Os dias

vêm antes das noites, não depois. Nunca
faz parte de sempre, assim como zero
é apenas um número entre outros números.
Toda forma é perfeita: não só a esfera,

que é só mais redonda que as outras – nada
de mais. E todas as proposições
são verdadeiras – se tornam verdade

no instante exato em que são formuladas.
Ficam sem efeito as contradições
todas. (Pronto. Creia. Não faça alarde.)

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 06/03/2019

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Paulo Henriques Britto – de “Duas autotraduções”

(CADERNO, XIV)
II

Isto, também, será lembrado um dia,
porém não tal qual é sentido agora.
Não que as lembranças sejam distorcidas
de propósito; é só porque a memória,
entre o vivido e o lembrado, interpõe
como que um filtro, com pequenas falhas
ou até mesmo substituições –
nem tanto por mentiras deslavadas,
mas por versões plausíveis do ocorrido.
São mudanças sutis, que se desculpam,
como perdas num texto traduzido,
e não trapaças. Pois a vida é tua,
e se nem sempre é possível amá-la,
tens o direito (ao menos) de editá-la.

Paulo Henriques Britto – de “Caderno”

XIV

This, too, will one day be remembered
not quite like what it feels like now.
It’s not that memories are tampered
with purposely, but that, somehow,
between life lived and life relalled
things go awry, details get lost
and are replaced – not by a bald-
faced fabrication, but at worst
a plausible version of what
could have happened, in circumstances
at just a slight remove from fact.
We’re talking subtlety, nuances,
not downright lies. Don’t you forget it:
Your life is yours (at least) to edit.

Republicação: poema publicado na página originalmente em 14/02/2019

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Paulo Henriques Britto – Heraclitus meets Pascal

Ninguém se molha duas vezes
na mesma tempestade. Mudam
você, a água, nem é o mesmo,
na sua mão, o guarda-chuva;

muda o motivo pelo qual
você houve por bem molhar-se,
oferecendo ao temporal
– por assim dizer – a outra face;

não muda, porém, a consciência
de que os sapatos encharcados
e a calça manchada de lama

terão talvez efeito idêntico
ao que teria ter ficado
em casa, quietinho, na cama.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 06/01/2019

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Paulo Henriques Britto – Nenhum Mistério

I

Não chega a ser desespero,
mas não por haver esperança.
Falta a ênfase, o tempero,
o sal da intemperança,

sem o qual não é iguaria
à altura de grandes gestos.
É mais da categoria
das migalhas, dos restos.

Pois dessa matéria escassa
há que se tirar sustância.
(Até mesmo na desgraça
é pra poucos a abundância.)

II

Não há nenhum mistério nesta história
em que o culpado se anuncia
ainda na primeira hora,

e são tão copiosas as pistas
quanto inúteis, e o final
– que, é claro, já se sabia

desde o início – é banal,
melancólico, besta
e isento de moral.

Mesmo assim, esta
é a história lida
até por quem detesta

toda a inútil narrativa,
até por não haver alternativa.

III

Seria igual se fosse diferente,
seria – sendo outro – mais do mesmo.
Tome-se alguma alternativa, a esmo,
e a leva adiante: tente o que se tente,

acaba-se chegando sempre ao ponto
exato de onde se partiu (o nada).
E o mais é igual, qualquer que seja a estrada,
não por ser o planeta tão redondo,

e sim por ser estreito o repertório
de mundos disponíveis, porque a margem
é tão parca nas bordas do papel.

Assim, qualquer desvio aleatório
por fim se reduz a mera miragem,
um nada – nada novo – sob o céu.

IV

A posição de tudo ao seu redor
(a pele de uma bolha):
resultado final (desolador)
de mil acasos, mil escolhas,

todas suas. Aranha em sua teia,
olho de furacão
que tudo vê e de tudo se alheia:
só consciência e solidão.

V

É, sem tirar nem pôr, exatamente
como no pesadelo. É o lugar
onde se está agora. O presente.

Impossível fugir desta presença,
e impensável. Estar aqui é pensar,
e pensar é sempre ser o que pensa,

e o que pensa dispensa o sonho, certo
de que só o estar onde se está importa.
E no entanto este teto tão perto

da cabeça, este chão frio demais,
estas paredes pensas, esta porta
que fecha como quem não se abre mais –

como não reconhecer isso, ao vê-lo?
É tudo tal como no pesadelo.

VI

Permanecer aqui,
apesar e além.
Estar, mesmo assim,
mesmo sem.

Efeito talvez
da inércia de ser:
mesmo não querendo,
não poder.

Ou então um símile
cru e exato:
como comer após cuspir
no prato.

VII

Chega um momento em que as mãos
já não querem cumprir ordens.
Não pegam mais, não apertam,
e sim mordem.

Os olhos se cansam da luz,
os pés desprezam os pisos,
a mente rejeita todo e
qualquer juízo.

E o rosto – este velho disfarce
velhaco, por trás do qual
não há outra coisa senão
uma máscara igual,

o rosto nem mesmo se esforça
pra parecer que não é outro.
(Já, já não será mais preciso
fingir-se de morto.)

VIII

Zelosamente se procura
o mal preciso tão sonhado
de que o remédio já encontrado
seria a cura.

Pois é mister que se aproveite
o que se tem, por mais daninho,
que da pedra que há no caminho
se extraia o leite.

Caso contrário, há que abrir mão
do pouco que ao menos parece
real e sólido,

o que seria catastrófico
(mas também seria uma espécie
de solução).

IX

Cada objeto está em seu lugar,
menos um.
Cada ser tem razão de ser ou estar,
menos um.
Todos têm uma causa e uma razão,
menos um.
Nenhum deles requer explicação,
menos um.
E saberão o quanto são pequenos?
(Mais é menos.)

X

Dentro da noite por fim construída
há tempo para tudo, e muito espaço.
Longas janelas. Cortinas corridas.
Nos armários vazios, grandes chumaços

de algodão a preencher cada centímetro
cúbico de cada compartimento
e gaveta. Na parede, um termômetro
no qual ninguém dá corda há muito tempo.

Nas prateleiras, livros entulhados
de palavras que escorrem devagar,
formando umas poças ralas no chão.

É uma espécie de véspera. Calados,
os cômodos esperam o raiar
de alguma coisa como um dia. Ou não.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 13/12/2018

Paulo Henriques Britto – Nenhuma Arte

Os deuses do acaso dão, a quem nada
lhes pediu, o que um dia levam embora;
e se não foi pedida a coisa dada
não cabe se queixar da perda agora.
Mas não ter tido nunca nada não
seria bem melhor — ou menos mau?
Mesmo sabendo que uma solidão
completa era o capítulo final,
a anestesia valeria o preço?
(Rememorar o que não foi não dá
em nada. É como enxergar um começo
no que não pode ser senão o fim.
Ontem foi ontem. Amanhã não há.
Hoje é só hoje. Os deuses são assim.)

II

Tempo agora perdido
(todo tempo se perde)
vivo só nos vestígios

que resistem por leves
(tudo que pesa afunda)
no mais raso da pele

onde o que foi desejo
(tudo que fica dói)
até hoje lateja.

III

Pois era assim: o dia era mais dia,
diáfano, diíssimo, e entre um
e outro dia o luxo de uma noite.
E isso era tudo. Havia isso. E mais

a promessa de que após esse dia
viria uma noite, e, depois, mais um,
primícia da iguaria de uma noite.
Isso era vida. Isso era até demais,

e isso nenhum de nós nunca entendia,
e era dia claro, e isso nenhum
de nós via, como se fosse noite.
E isso bastava. Não havia mais

que a sucessão que não cessava: dia
se abrindo em noite a desabrochar num
dia em que sempre eclodia uma noite.
Isso era sempre. E agora, nunca mais.

IV

Uma vida inteira passada
dentro dos confins de um corpo
junto ao qual vem atrelada
a consciência, peso morto
que acusa o golpe sofrido
e cochicha ao pé do ouvido
depois que o fato se deu:
nada que te pertence é teu.

Único antídoto do nada
entre as peçonhas da vida,
coisa por sorte encontrada
e por desgraça perdida,
amor lega, em sua ausência,
um lembrete à consciência
(se ela por acaso esqueceu):
nada que te pertence é teu.

Princípio? Tudo é contingente.
Fim? Toda luz termina em breu.
Sentido? Quem quiser que invente,
quem não quiser se contente
com este presente besta
que, quando acabou a festa,
a vida avara lhe deu:
nada que te pertence é teu.

V

Veja e toque, e se contente.
Nada mais lhe é permitido.
Pois tudo que você tem
só é seu no escasso sentido

em que é sua a sombra escassa
que esse seu corpo segrega,
que some assim que se apaga
a exata luz que ela nega.

VI

Aprender enfim
a cruel lição:
a que só se aprende
por subtração:

a que não saber
não é desvantagem
(pois nem sempre é ganho
uma aprendizagem

(o que vai de encontro
ao que muitos pensam)),
e sim uma sorte,
uma vera bênção:

a que não é arte
nem tampouco ciência:
pois não há teoria —
só práxis — da ausência.

(Mas dizer-lhe o nome
já é exorcizá-la:
quem a vivencia
cala.)

Aqui: https://www.companhiadasletras.com.br/trechos/14473.pdf

REPUBLICAÇÃO: poema publicado na página originalmente em 25/11/2018