Humberto Gessinger – Terceira do Plural

Corrida pra vender cigarro
Cigarro pra vender remédio
Remédio pra curar a tosse
Tossir, cuspir, jogar pra fora

Corrida pra vender os carros
Pneu, cerveja e gasolina
Cabeça pra usar boné
E professar a fé de quem patrocina

Eles querem te vender…
Eles querem te comprar…
Querem te matar (a sede)
Eles querem te sedar!

Quem são eles?
Quem eles pensam que são?

Corrida contra o relógio
Silicone contra a gravidade
Dedo no gatilho, velocidade
Quem mente antes diz a verdade
Satisfação garantida
Obsolescência programada
Eles ganham a corrida
Antes mesmo da largada

Eles querem te vender…
Eles querem te comprar…
Querem te matar (de rir)
Querem te fazer chorar

Quem são eles?
Quem eles pensam que são?

Vender, comprar,
Vendar os olhos,
Jogar a rede contra a parede
Querem te deixar com sede,
Não querem te deixar pensar

Quem são eles?
Quem eles pensam que são?

Quem são eles?

Arnaldo Antunes – A Casa é Sua

Não me falta cadeira
Não me falta sofá
Só falta você sentada na sala
Só falta você estar

Não me falta parede
E nela uma porta pra você entrar
Não me falta tapete
Só falta o seu pé descalço pra pisar

Não me falta cama
Só falta você deitar
Não me falta o sol da manhã
Só falta você acordar

Pras janelas se abrirem pra mim
E o vento brincar no quintal
Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal

A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora

A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio

Não me falta banheiro, quarto
Abajur, sala de jantar
Não me falta cozinha
Só falta a campainha tocar

Não me falta cachorro
Uivando só porque você não está
Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar

Não me falta casa
Só falta ela ser um lar
Não me falta o tempo que passa
Só não dá mais para tanto esperar

Para os pássaros voltarem a cantar
E a nuvem desenhar um coração flechado
Para o chão voltar a se deitar
E a chuva batucar no telhado

A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora

A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio

Violeta de Outono – Outono

 

No percurso rumo ao prédio oculto
Desolado o sol se põe a oeste
Lua em gancho, triste, sons do vento
Parte o coração o frio do outono

Canto do extremo do mundo
Espero em silêncio profundo

No jardim noturno o esquecimento
Velha árvore espera o julgamento
Nada explicará meu sentimento
Está em meu coração o frio do outono

Canto do extremo do mundo
Espero em silêncio profundo

Domingo, 20 de março: primeiro dia do outono de 2016

Chico Buarque e Francis Hime – Amor Barato

 

Eu queria ser
Um tipo de compositor
Capaz de cantar nosso amor
Modesto

Um tipo de amor
Que é de mendigar cafuné
Que é pobre e às vezes nem é
Honesto

Pechincha de amor
Mas que eu faço tanta questão
Que se tiver precisão
Eu furto

Vem cá, meu amor
Aguenta o teu cantador
Me esquenta porque o cobertor é curto

Mas levo esse amor
Com o zelo de quem leva o andor
Eu velo pelo meu amor
Que sonha

Que enfim, nosso amor
Também pode ter seu valor
Também é um tipo de flor
Que nem outro tipo de flor

Dum tipo que tem
Que não deve nada a ninguém
Que dá mais que maria-sem-vergonha

Eu queria ser
Um tipo de compositor
Capaz de cantar nosso amor
Barato

Um tipo de amor
Que é de esfarrapar e cerzir
Que é de comer e cuspir
No prato

Mas levo esse amor
Com zelo de quem leva o andor
Eu velo pelo meu amor
Que sonha

Que, enfim, nosso amor
Também pode ter seu valor
Também é um tipo de flor
Que nem outro tipo de flor

Dum tipo que tem
Que não deve nada a ninguém
Que dá mais que maria-sem-vergonha

Chico Buarque – Pedaço de Mim

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus

Intérpretes: Chico Buarque e Zizi Possi

Haroldo Barbosa e Luis Reis – Notícia de Jornal

“Tentou contra a existência
Num humilde barracão
Joana de Tal, por causa de um tal João.
Depois de medicada,
Retirou-se pro seu lar.”

Aí a notícia carece de exatidão.
O lar não mais existe.
Ninguém volta ao que acabou.
Joana é mais uma mulata triste que errou.

Errou na dose, errou no amor,
Joana errou de João.
Ninguém notou, ninguém morou
Na dor que era o seu mal:

– A dor da gente não sai no jornal…

Letra: Haroldo Barbosa / Intérpretes: Chico Buarque e Miltinho

Caetano Veloso – Como Dois e Dois

Quando você me ouvir cantar
Venha, não creia, eu não corro perigo
Digo, não digo, não ligo, deixo no ar
Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar…

Tudo vai mal, tudo
Tudo é igual quando eu canto e sou mudo
Mas eu não minto, não minto, estou longe e perto
Sinto alegrias, tristezas e brinco

Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco…

Quando você me ouvir chorar
Tente, não cante, não conte comigo
Falo, não calo, não falo, deixo sangrar
Algumas lágrimas bastam pra consolar

Tudo vai mal, tudo
Tudo mudou, não me iludo e contudo
A mesma porta sem trinco, o mesmo teto,
E a mesma lua a furar nosso zinco.

Meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo
Tudo certo como dois e dois são cinco.

Caetano Veloso – O Homem Velho

O homem velho deixa a vida e morte para trás
Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais
O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais
O homem velho é o rei dos animais

A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol
As linhas do destino nas mãos a mão apagou
Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock’n’roll
As coisas migram e ele serve de farol

A carne, a arte arde, a tarde cai
No abismo das esquinas
A brisa leve traz o olor fulgaz
Do sexo das meninas

Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon
Belezas, dores e alegrias passam sem um som
Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron
E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom

Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval
Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal
Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual
Já tem coragem de saber que é imortal

Adriana Calcanhotto e Antonio Cicero – Inverno

 

No dia em que fui mais feliz
Eu vi um avião
Se espelhar no seu olhar até sumir
De lá pra cá não sei
Caminho ao longo do canal
Faço longas cartas pra ninguém
E o inverno no Leblon é quase glacial
Há algo que jamais se esclareceu:
Onde foi exatamente que larguei
Naquele dia mesmo
O leão que sempre cavalguei?
Lá mesmo esqueci
Que o destino
Sempre me quis só
No deserto sem saudade, sem remorso só
Sem amarras, barco embriagado ao mar
Não sei o que em mim
Só quer me lembrar
Que um dia o céu
Reuniu-se a terra um instante por nós dois
Pouco antes do Ocidente se assombrar

Letra de Antonio Cícero

Adriana Calcanhoto – Estrelas

estrelas
para mim
para mim
estrelas

são para mim
estrelas para mim
estrelas
estrelas

para quê?
para quê?
para quê?

estrelas para mim
só para mim.

para mim
para mim
para mim

e a treva entre as estrelas
só para mim.