Arnaldo Antunes – Eu apresento a página branca

Eu apresento a página branca

Contra:

Burocratas travestidos de poetas
Sem-graças travestidos de sérios
Anões travestidos de crianças
Complacentes travestidos de justos
Jingles travestidos de rock
Estórias travestidas de cinema
Chatos travestidos de coitados
Passivos travestidos de pacatos
Medo travestido de senso
Censores travestidos de sensores
Palavras travestidas de sentido
Palavras caladas travestidas de silêncio
Obscuros travestidos de complexos
Bois travestidos de touros
Fraquezas travestidas de virtudes
Bagaços travestidos de polpa
Bagos travestidos de cérebros
Celas travestidas de lares
Paisanas travestidos de drogados
Lobos travestidos de cordeiros
Pedantes travestidos de cultos
Egos travestidos de eros
Lerdos travestidos de zen
Burrice travestida de citações
água travestida de chuva
aquário travestido de tevê
água travestida de vinho
água solta apagando o afago do fogo
água mole sem pedra dura
água parada onde estagnam os impulsos
água que turva as lentes e enferruja as lâminas
água morna do bom gosto, do bom senso e das boas intenções
insípida, amorfa, inodora, incolor
água que o comerciante esperto coloca na garrafa para diluir o whisky
água onde não há seca
água onde não há sede
água em abundância
água em excesso
água em palavras.

Eu apresento a página branca.

A árvore sem sementes.

O vidro sem nada na frente.

Contra a água.

Arnaldo Antunes, Fernando Laszlo e Walter Silveira – Fome de Sede

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Marisa Monte, Arnaldo Antunes, Antonio Carlos Santos de Freitas – Infinito particular

Eis o melhor e o pior de mim
No meu termômetro o meu quilate
Vem, cara, me retrate
Não é impossível
Eu não sou difícil de ler

Faça sua parte
Eu sou daqui, eu não sou de Marte
Vem, cara, me repara
Não vê, ‘tá na cara
Eu sou porta-bandeira de mim

Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular

Em alguns instantes
Sou pequenina e também gigante
Vem, cara, se declara
O mundo é portátil
Pra quem não tem nada a esconder

Olha minha cara
É só mistério, não tem segredo
Vem cá, não tenha medo
A água é potável
Daqui você pode beber

Só não se perca ao entrar
No meu infinito particular

Arnaldo Antunes – Lugar Nenhum

Não sou brasileiro
Não sou estrangeiro
Não sou brasileiro
Não sou estrangeiro
Eu não sou de nenhum lugar
Sou de lugar nenhum
Sou de lugar nenhum
Não sou de São Paulo
Não sou japonês
Não sou carioca
Não sou português
Não sou de Brasília
Não sou do Brasil
Nenhuma pátria me pariu

Eu não tô nem aí
Eu não tô nem aqui
Eu não tô nem aí

Arnaldo Antunes – Saudades

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Arnaldo Antunes – Saiba

 

(intérprete: Adriana Calcanhoto/Partimpim)

Saiba
Todo mundo foi neném
Einstein, Freud e Platão, também
Hitler, Bush e Saddam Hussein
Quem tem grana e quem não tem…

Saiba
Todo mundo teve infância
Maomé já foi criança
Arquimedes, Buda, Galileu
E também você e eu…

Saiba
Todo mundo teve medo
Mesmo que seja segredo
Nietzsche e Simone de Beauvoir
Fernandinho Beira-Mar…

Saiba
Todo mundo vai morrer
Presidente, general ou rei
Anglo-saxão ou muçulmano
Todo e qualquer ser humano…

Saiba
Todo mundo teve pai
Quem já foi e quem ainda vai
Lao-Tsé, Moisés, Ramsés, Pelé
Gandhi, Mike Tyson, Salomé…

Saiba
Todo mundo teve mãe
Índios, africanos e alemães
Nero, Che Guevara, Pinochet
E também eu e você
E também eu e você
E também eu e você…

Arnaldo Antunes – Só o Sol

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Arnaldo Antunes – Casulo

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Arnaldo Antunes – Acaba Acontecendo

o que você mais teme
acaba acontecendo

o que você mais quer
acaba acontecendo

o que ninguém espera
acaba acontecendo

o que ninguém consegue
mais conter

acaba
de acontecer

Arnaldo Antunes – Cultura

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