Ana Martins Marques – Finados

Finados

                                A morte se expia vivendo
Giuseppe Ungaretti, “Sou uma criatura”

Estava a morte por perto
e por isso a vida
armou sua vingança:
aumentando-nos a fome
a vontade de cerveja
e condimentos
o desejo de gastar o dia ao sol.
Tuas camisas nos armários
agora apenas vestem a si mesmas.
Seria preciso usá-las, levá-las para passear,
manchá-las de café, tinta, graxa,
desodorante, suor.
Uma ofensa à morte
um desafio.
Quem sabe tudo o que morreu
com quem morreu?
Um livro nunca escrito
um novo amor
um pensamento que permanecerá
impensado.
Quem sabe o que essa morte
trouxe à vida?
As casas
coloridas
estão alegres sem motivo.

*

Acabamos de lançar tuas cinzas
surpresos de que reste
tão pouco de ti
depois seguimos em silêncio
ao sol
em meio a tudo o que
te sobreviveu
— e tu estás
em tudo

*

Estamos todos reunidos
na praia da palavra infância

um barco é um nó no mar

dormem tarde nesta época
as luzes do dia

estamos todos reunidos em torno
do seu lento apagamento

o mar devolve espumando
o que comeu

sob sua superfície brilhante
pastam peixes coloridos

anêmonas, pedras, corais
como sob a capa de um livro

estamos todos reunidos em torno
do ouriço da palavra ouriço

este ano você não veio

justo no primeiro ano da sua morte
você não deveria faltar

estamos todos reunidos em torno
da fogueira do seu nome

*

É como se a infância não fosse um tempo
mas um lugar
com seus cumes seus esconderijos
suas pequenas clareiras
um lugar, aquele onde cometemos
nosso primeiro crime
há quem tenha matado um coelho
há quem tenha matado um sapo
há quem tenha matado um cão
há quem tenha mentido perseguido destroçado
deixado morrer
por capricho
de minha parte matei uma criança:
uma menina morreu em mim
por onde vou carrego
seu cadáver
e a forma exata do seu corpo
repousa no meu corpo
como num vestido
largo demais

Deixe um comentário