Nelson Santander – Quatro poemas sobre o tempo

RELIGIO1

o tempo me fascina
o tempo (os ponteiros fascistas)
de horas assassinas
suas facetas, seus lados

cegos
surdos
mudos me atraem
seus mundos

passados/
presentes/
futuros me traem

subtraem
(o tempo perdido
a perda de tempo:
pretextos para a vida

e a morte)
os relógios de hoje são tão

belos
táteis
frágeis
mesmo nas horas mais negras

brilham
glaciais
antiga-
mente, as horas fluíam enferrujadas

sujas
ocas
foscas
opacas
hoje, no ir

e vir elétrico

e silencioso dos pêndulos-dias,
os galos já não mais anunciam a aurora:
com a precisão digital

do sol,
meu coração bate

e observa os anos
que es-
correm, rapidamente
horas
abaixo

05/1988

TEMPO, TEMPO

SINGULARIDADE

LIMIAR

  1. Notas:
    Os poemas acima foram escritos em fases distintas da minha vida: Religio e Tempo, Tempo, aos 21 anos; Singularidade, por volta dos 40; e Limiar, como indicado no próprio texto, no dia em que completei 49 anos.

    O tempo sempre fez parte das minhas reflexões, ainda que, muitas vezes, de forma inconsciente — como uma sombra persistente que molda não apenas o ritmo da minha existência, mas também o pensamento sobre o que significa ser finito em um universo que parece infinito. Essa presença constante, oscilando entre fascínio e resignação, se revela de modos distintos em cada poema, acompanhando a mudança da minha percepção ao longo dos anos.

    Em Religio, escrito na juventude, o tempo emerge como uma entidade mecânica e opressora, personificada no relógio — ou “religio” (palavra latina do qual deriva religião, e que significava originalmente respeito, reverência ou culto a algo divino), trocadilho que tenta fundir o sagrado e o cronológico. O fascínio inicial (“o tempo me fascina”) logo dá lugar à inquietação diante da efemeridade, em imagens de horas “assassinas” e anos que “escorrem/correm” rapidamente em direção à última volta do ponteiro. Com a diagramação fragmentária, com versos e palavras isolados, eu quis criar um fluxo visual que imita o tique-taque de um relógio. O poema presta tributo ao concretismo e neoconcretismo (minha porta de entrada para a poesia), organizando o texto como se escorresse pela página — feito de areia de ampulheta. Curiosamente, a inspiração do poema não veio de especulações metafísicas, mas da troca de um velho despertador de corda, tiquetaqueante, por um silencioso e compacto relógio a pilha. Às vezes, a beleza e o silêncio são aliados da poesia.

    Em Tempo, Tempo, também aos 21, a reflexão se expande para o cósmico: as pegadas humanas na Lua — aparentemente eternas — tornam-se metáfora de uma permanência ilusória. São comparadas a uma “velha fotografia”, imóveis e imunes ao tempo ou ao vento, até que o verso final afirma: “a eternidade inexiste”. Aqui, o tempo não é mais pessoal, mas uma força estéril que congela o movimento, revelando um temor implícito diante da insignificância humana no vazio espacial. A estrutura em três blocos pretende emprestar ao texto ritmo de silogismo poético, e o espaço em branco aqui não é apenas pausa, mas vazio físico — ecoando o próprio vácuo lunar.

    Singularidade, gestado por volta dos meus 43, é um dos poemas de que mais gosto, dentre os poucos que escrevi. Nele, tempo e espaço se entrelaçam, inspirados na cosmologia: Big Bang, expansão do universo, o nada que contém o tudo. A existência surge reduzida a um “sopro” ou “espasmo” infinitesimal no meio de “tanto tempo / tanto espaço”. É um momento de escala relativística e de aceitação filosófica da brevidade e da insignificância, em que a ansiedade juvenil se transforma em meditação sobre o absurdo — e também a beleza — da vida como “um curto espaço de tempo”. No plano formal, a palavra “expandindo” literalmente se expande pela página, emulando a expansão do espaço-tempo; já “in- / finite- / si- / mal” — que designa uma existência de extrema pequenez, infinitamente pequena; mínima, ínfima; e que, na matemática, é uma quantidade mais próxima de zero do que qualquer número real, mas diferente de zero — se fragmenta para revelar sentidos ocultos: in (palavra inglesa polissêmica que significa, dentre outras coisas, o que vive dentro e dentrofinite (finito ou limitado, em inglês), si (o eu), mal (no contexto do poema, imperfeição, dor ou limite inerente à vida). O branco e o preto participam ativamente da narrativa visual: a página simula tanto uma explosão cósmica quanto um mapa do universo, com o tempo à esquerda, o espaço à direita e, no centro, a existência — minúscula, como um náufrago em mar aberto. É o poema mais explicitamente visual da série e herdeiro direto das vanguardas concretas.

    Por fim, Limiar, aos 49, traz o tempo de volta ao plano íntimo, agora filtrado pelo humor e pela ironia. A epígrafe de Woody Allen lembra que a vida é mais obra do acaso do que do controle, e o poema registra, com simplicidade, o instante entre o “quase” e o “ocaso”. Aqui, a angústia inicial se converte em resignação bem-humorada, como se, depois de tanto refletir sobre o tempo, restasse apenas celebrá-lo — mesmo sabendo que ele é finito. ↩︎

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