Audre Lorde – Legado

I.
A cada dia que passa, meu rosto se assemelha
menos e menos com o seu. Quando jovem
ninguém confundia de quem eu era filha.
Meus traços físicos e a cor da minha pele,
distintos das de minhas irmãs de ossos delicados e pele clara,
me marcavam como a filha de Byron.

Nenhum sol se pôs quando você morreu, mas uma porta
se abriu para minha mãe. Depois que você partiu,
ela lamentou seu mundo em frangalhos, elevando
um punho de ferro suado com símbolos de negócios
um bloco de notas impresso habitando a casa do Senhor
sua voz oca ecoando pelos corredores do hospital
sim, mesmo que eu caminhe pelo vale
das sombras da morte
não temerei mal algum.

II.
Vasculho as mortes que você viveu
oscilando em uma ponte de interrogações.
Aos sete, em Barbados,
lançado na vida de seu pai desconhecido
sua coragem o levando da mesa de alfaiate
de volta ao mar.
Teriam as samambaias de Granada cantado
em seu 15º verão quando você pulou do navio
para procurar sua mãe
e a encontrou tarde demais
cercada de novos filhos?

Quem você teve que enterrar para se tornar o cumpridor da lei
a bela lenda
diante de cujo braço erguido até as árvores choravam
um homem de paixão profunda e muda
que queria filhos e teve cinco meninas?
Você deixou as duas primeiras se matando à sombra de uma samambaia
a mais nova é uma poeta renegada
procurando sua resposta em seu sangue.

Os relatos de minha mãe sobre Grenville
circulam pelas noites de verão.
Mas você se recusou a falar de casa,
de como orgulhosamente negro e sem um tostão chegou
a esta terra onde apenas os homens brancos
governavam pelo dinheiro. Sobre seu trabalho
no cais do Hotel Astor
sua brilhante esposa, uma camareira no andar de cima,
que unia o amor e a sobrevivência à ambição
enquanto a terra prometida murchava
o hotel fechava as portas
e você vendia maçãs compradas de madrugada
em um carrinho de mão na Broadway.

A imagem de um regresso
rico e triunfante
aquece seus dedos com frieiras
enquanto você conta moedas sob a neve de Manhattan
ou é apenas Linda
que sonha com um lar?

Quando a primogênita de minha mãe chora por leite
no inverno brutal da cidade
os rostos de suas outras filhas se apagam
como a imagem do quintal coberto de samambaias
onde uma menina negra cozinhou para você
e seu monte de cinzas ainda cheira a curry?

III.
O segredo sobre minhas irmãs roubou sua língua
como eu roubei dinheiro de seus bolsos à meia-noite
teimosa e trêmula
enquanto ameaçava atirar em mim se eu fosse a pessoa certa?
As lâmpadas nuas no teto da nossa cozinha
rebrilham em seu revólver
enquanto você o carrega, sussurrando.

Será que duas garotinhas negras de Granada
dispararam como peixes voadores
entre seus olhos desviados
e meu corpo sem pijama
em nosso último verão de adolescência?
Ouvindo orações
em seu espelho de barbear
nossas conversas mais intensas
eram você praticando como me contar
sobre minhas irmãs gêmeas abandonadas
como você havia sido abandonado
por outra mulher preta em busca
de fortuna em Granada Barbados
Panamá Granada.
Cidade de Nova York.

IV.
Você comprou livros antigos em leilões
para o meu mundo sem linguagem
deu-me seus ídolos Marcus Garvey Cidadão Kane
e petiscos do seu prato
quando eu tinha sete anos.
Devo a você minha mandíbula daomeana
a escola gratuita de ensino médio para meninas talentosas
que ninguém mais achava que eu deveria frequentar
e a escuridão que compartilhamos.
Nossos laços mais profundos continuam sendo
o espelho e a arma.

V.
Um juiz negro e idoso
conhecido por sua habilidade com as mulheres
visita a ilha onde moro
e aperta minha mão, sorrindo.
“Conheci seu pai”, ele diz
“um grande homem!” Sorri novamente.
Estremeço com sua sobrancelha levantada.
A voz de uma mulher há muito falecida
me ataca ao se despedir:
“Você nunca estará satisfeita
até ter o mundo inteiro
em sua cama!”

Agora sou mais velha do que você era quando morreu
pelo excesso de trabalho e silêncio que explodiram seu cérebro.
Você está gradualmente desaparecendo do meu rosto.
Quem era você além do Salmo 23?
Sabendo tão pouco
como me tornei tão parecida
com você?

Sua fome de retidão
floresce em raiva
as mornas lágrimas do luto
nunca derramadas por você antes
de suas medidas distorcidas
a agonia da negação
o poder dos segredos não compartilhados.

Trad.: Nelson Santander

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Inheritance—His

I.
My face resembles your face
less and less each day. When I was young
no one mistook whose child I was.
Features build coloring
alone among my creamy fine-boned sisters
marked me Byron’s daughter.

No sun set when you died, but a door
opened onto my mother. After you left
she grieved her crumpled world aloft
an iron fist sweated with business symbols
a printed blotter dwell in the house of Lord’s
your hollow voice changing down a hospital corridor
yea, though I walk through the valley
of the shadow of death
I will fear no evil.

II.
I rummage through the deaths you lived
swaying on a bridge of question.
At seven in Barbados
dropped into your unknown father’s life
your courage vault from his tailor’s table
back to the sea.
Did the Grenada treeferns sing
your 15th summer as you jumped ship
to seek your mother
finding her too late
surrounded with new sons?

Who did you bury to become the enforcer of the law
the handsome legend
before whose raised arm even trees wept
a man of deep and wordless passion
who wanted sons and got five girls?
You left the first two scratching in a treefern’s shade
the youngest is a renegade poet
searching for your answer in my blood.

My mother’s Grenville tales
spin through early summer evenings.
But you refused to speak of home
of stepping proud Black and penniless
into this land where only white men
ruled by money. How you labored
in the docks of the Hotel Astor
your bright wife a chambermaid upstairs
welded love and survival to ambition
as the land of promise withered
crashed the hotel closed
and you peddle dawn-bought apples
from a push-cart on Broadway.

Does an image of return
wealthy and triumphant
warm your chilblained fingers
as you count coins in the Manhattan snow
or is it only Linda
who dreams of home?

When my mother’s first-born cries for milk
in the brutal city winter
do the faces of your other daughters dim
like the image of the treeferned yard
where a dark girl first cooked for you
and her ash heap still smells of curry?

III.
Did the secret of my sisters steal your tongue
like I stole money from your midnight pockets
stubborn and quaking
as you threaten to shoot me if I am the one?
The naked lightbulbs in our kitchen ceiling
glint off your service revolver
as you load whispering.

Did two little dark girls in Grenada
dart like flying fish
between your averted eyes
and my pajamaless body
our last adolescent summer?
Eavesdropped orations
to your shaving mirror
our most intense conversations
were you practicing how to tell me
of my twin sisters abandoned
as you had been abandoned
by another Black woman seeking
her fortune Grenada Barbados
Panama Grenada.
New York City.

IV.
You bought old books at auctions
for my unlanguaged world
gave me your idols Marcus Garvey Citizen Kane
and morsels from your dinner plate
when I was seven.
I owe you my Dahomeyan jaw
the free high school for gifted girls
no one else thought I should attend
and the darkness that we share.
Our deepest bonds remain
the mirror and the gun.

V.
An elderly Black judge
known for his way with women
visits this island where I live
shakes my hand, smiling.
“I knew your father,” he says
“quite a man!” Smiles again.
I flinch at his raised eyebrow.
A long-gone woman’s voice
lashes out at me in parting
“You will never be satisfied
until you have the whole world
in your bed!”

Now I am older than you were when you died
overwork and silence exploding your brain.
You are gradually receding from my face.
Who were you outside the 23rd Psalm?
Knowing so little
how did I become so much
like you?

Your hunger for rectitude
blossoms into rage
the hot tears of mourning
never shed for you before
your twisted measurements
the agony of denial
the power of unshared secrets.

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