Cassiano Ricardo – A Cidade Confusa

I

A cidade chora
lágrimas elétricas
sobre o corpo anônimo
do eletrocutado.

As figuras tétricas
que residem, mudas,
na parede do templo,
me cercam, na rua.

Como se eu fosse, acaso,
o culpado de algum acontecimento
na noite confusa.

II

O deus unicórnio
que há no escudo do rei,
e que lhe defende
a coroa, me acusa.

Os anjos da guerra
têm rostos cubistas.
Monstros estão nascendo
como animais dourados.

O perfil das coisas
está, agora, sendo
substituído por outro,
doloroso e polêmico.

As ingênuas figuras
dos meus livros de infância
mudaram de rosto…
Como reconhecê-las?

III

Faço das palavras
meu reduto anti-aéreo.
Cada minuto é o fruto
de um difícil relógio.

Toda a fauna do escombro
no chão onde caiu
a estrela voadora
vem chorar no meu ombro.

O habitante da Terra
traz no rosto o estigma
de quem, como o infeliz rei,
decifrou o enigma.

Onde crime mais grave
que alterar-se a silhueta
de uma criatura, de uma
simples borboleta,

não por arte, magia,
ou graça de pintura,
mas por lesão dos seres,
em sua argila obscura.

Quando voltarão
os pombos ao navio?
As palavras ao léxico
hoje tão acerbo?

Deus não fez a linguagem
do homem à sua imagem?
Como no começo,
no fim não será o verbo?

IV

Uma Salomé alva
me traz, em sua salva,
a cabeça de João,
degolado às cinco horas.

Há, em cada sol falso,
uma aurora abolida…
A noite leva o sol,
fica o cadafalso.

Mas, de quem a culpa?
Não o sei; o que sei
é que não fui eu
quem matou os símbolos.

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