Les Murray – Criação contínua

Não trazemos nada para este mundo
exceto nossa capacidade gradual
de criá-lo, dentre tudo o que desaparece
e tudo o que viverá mais que nós.

Trad.: Nelson Santander

Continuous Creation

We bring nothing into this world
except our gradual ability
to create it, out of all that vanishes
and all that will outlast us.

Inês Lourenço – As Coisa que Cessam

Tanto desprezo
pelo que é transitório e finito. Não servirei
senhor que possa morrer. Mas passamos
a vida a amar todas as fragilidades
das coisas que cessam. Há
coisa mais breve do que um sorriso?
Coisa mais curta que a alegria
de um reencontro? Tudo o que amamos
é passageiro e frágil ou
as duas coisas. Mas persegue-nos
a nostalgia do infindável
como uma tara hereditária.

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 12/01/2018

Ursula K. Le Guin – Parentesco

Ardendo muito lentamente, a grande árvore da floresta
se ergue da sutil cavidade de neve
derretida ao seu redor pelo brando e duradouro
calor de seu ser e de sua vontade de ser
raiz, tronco, ramo, folha, e de conhecer a
terra escura, a luz do sol, o toque do vento, o canto do pássaro.

Desenraizados, desassossegados e de sangue quente, nós
ardemos em labaredas que nos cegam para este lento,
elevado e fraterno fogo da vida, tão forte
agora quanto na brotação, dois séculos atrás.

Trad.: Nelson Santander

Kinship

Very slowly burning, the big forest tree
stands in the slight hollow of the snow
melted around it by the mild, long
heat of its being and its will to be
root, trunk, branch, leaf, and know
earth dark, sun light, wind touch, bird song.

Rootless and restless and warmblooded, we
blaze in the flare that blinds us to that slow,
tall, fraternal fire of life as strong
now as in the seedling two centuries ago.

Maria Mazziotti Gillan – Foi uma semana

Foi uma semana

… de olhar para cima, para dentro, abaixo da superfície e para o passado.”
—New York Times, D3, May 5, 2013

Este ano foi assim para mim, você, morto já
há três anos e transposto para aquele outro lugar onde eu não posso
toca-lo, e que deixei para trás olhando para cima, para aquele lugar
que eu imaginava ser o céu e onde espero que você possa sentir
minha falta. A NASA anunciou seus planos de trazer uma amostra de Marte
para a Terra. Gostaria de imaginar que eu poderia trazer de volta alguma
recordação sua, embora meu amigo me diga que tenho que
deixa-lo ir. Li sobre um inseto de 23 milhões de anos,
de uma espécie até então desconhecida encontrada na Europa,
tão perfeitamente preservado em âmbar que cada pequeno segmento
do bicho de 1,8 polegada de comprimento é claramente visível,
com todo seu tecido mole intacto. Sentada em minha poltrona agora,
à noite, em nossa sala de estar, minhas pernas levantadas,
meus olhos fixos firmemente na tela da TV, em que assisto
programas britânicos de mistério, subitamente vislumbro uma imagem
de mim mesma preservada em âmbar, lágrimas no rosto,
o controle remoto da TV ainda firmemente posicionado em minha mão.
O que os cientistas do futuro fariam comigo?
Esta mulher rechonchuda sozinha em sua casa silenciosa, meio adormecida
em um sofá que a sustém como uma imensa mão marrom.
Eles olhariam detidamente, mas como poderiam entender
toda a tristeza e saudade que estariam pulsando
abaixo da superfície de sua pele
e nas câmaras do seu coração?

Trad.: Nelson Santander

It’s Been A Week

… of looking upward, inward, below the surface and back in time.”
—New York Times, D3, May 5, 2013

This year has been a year like that for me, you, already three
years dead and crossed over to that other place where I cannot
touch you, and I left behind looking upward to that place
where I imagined heaven is and where I hope you can feel me
missing you. NASA announces its plans to bring a piece of Mars
back to earth. I’d like to imagine I could bring back some
memento of you, though my friend tells me I have
to let you go. I read about a 23-million-year-old insect
of a previously unknown species found in Europe,
so perfectly preserved in amber that each tiny digit
of the 1.8-inch-long animal is clearly visible,
all its soft tissue intact. Sitting in my recliner now,
in our family room in the evenings, my legs elevated,
my eyes fixed firmly on the TV screen, where I watch
British mysteries, I suddenly have an image
of myself preserved in amber, tears on my cheeks,
the TV remote still solidly positioned in my hand.
What would the scientists of the future make of me?
This chubby woman alone in her silent house, half asleep
in a chair that holds her like a huge brown hand.
They would stare and stare, but how could they know
all the grief and longing that pulsed
below the surface of her skin
and in the chambers of her heart?

Tomas Tranströmer – Minnena Ser Mig (em duas traduções)

Memórias que me Observam

Manhã de Junho, cedo demais para acordar,
tarde demais para adormecer.

Tenho de sair – é densa a folhagem das
memórias, perseguem-me com o seu olhar.

Não se deixam ver, misturam-se todas
com o fundo, verdadeiros camaleões.

Tão perto estão que as ouço respirarem
aqui onde o canto do pássaro ensurdece.

     Trad.: José Eduardo Reis

As recordações olham para mim

Uma manhã de Junho quando ainda é cedo para acordar
mas demasiado tarde para voltar a pegar no sono.

Embrenho-me pelo arvoredo repleto de recordações
e elas seguem-me com os seus olhares.

Autênticos camaleões, elas não se mostram,
diluem-se literalmente no cenário.

E embora o gorjeio dos pássaros seja ensurdecedor,
estão tão perto de mim que ouço como respiram.

     Trad.: Alexandre Pastor

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 05/01/2018

MINNENA SER MIG

En junimorgon då det är för tidigt
att vakna men för sent att somna om.

Jag måste ut i grönskan som är fullsatt
av minnen, och de följer mig med blicken.

De syns inte, de smälter helt ihop
med bakgrunden, perfekta kameleonter.

De är så nära att jag hör dem andas
fast fågelsången är bedövande.

Mary Oliver – Flores brancas

Ontem à noite
no campo
eu me deitei no escuro
para pensar na morte,
mas em vez disso adormeci,
como se estivesse em um quarto vasto e inclinado
repleto daquelas flores brancas
que se abrem todo verão,
viscosas e desordenadas,
nos tépidos campos.
Quando despertei
a luz da manhã deslizava
perante as estrelas,
e eu estava coberta
de flores.
Não sei
como aconteceu —
não sei
se meu corpo mergulhou
para baixo das adocicadas videiras
em algum tipo de afinidade sonoafiada
com as profundezas, ou se
aquela energia verde
ergueu-se como uma onda
e se enroscou em mim, reivindicando-me
em seus braços rudes.
Eu a afastei, mas não me levantei.
Nunca em minha vida me sentira tão suave,
ou tão escorregadia,
ou tão resplandecentemente vazia.
Nunca em minha vida
me sentira tão perto
daquela linha porosa
onde meu próprio corpo terminava
e as raízes e os caules e as flores
começavam.

Trad.: Nelson Santander

White Flowers

Last night
in the fields
I lay down in the darkness
to think about death,
but instead I fell asleep,
as if in a vast and sloping room
filled with those white flowers
that open all summer,
sticky and untidy,
in the warm fields.
When I woke
the morning light was just slipping
in front of the stars,
and I was covered
with blossoms.
I don’t know
how it happened—
I don’t know
if my body went diving down
under the sugary vines
in some sleep-sharpened affinity
with the depths, or whether
that green energy
rose like a wave
and curled over me, claiming me
in its husky arms.
I pushed them away, but I didn’t rise.
Never in my life had I felt so plush,
or so slippery,
or so resplendently empty.
Never in my life
had I felt myself so near
that porous line
where my own body was done with
and the roots and the stems and the flowers
began.

Rainer Maria Rilke – Fonte Romana

Vila Borghese

Duas velhas bacias sobrepondo
suas bordas de mármore redondo.
Do alto a água fluindo, devagar,
sobre a água, mais embaixo, a esperar,

muda, ao murmúrio, em diálogo secreto,
como que só no côncavo da mão,
entremostrando um singular objeto:
o céu, atrás da verde escuridão;

ela mesma a escorrer na bela pia,
em círculos e círculos, constante-
mente, impassível e sem nostalgia,

descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia.

Trad.: Augusto de Campos

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 27/12/2017

Römische Fontäne

Zwei Becken, eins das andere übersteigend
aus einem alten runden Marmorrand,
und aus dem oberen Wasser leis sich neigend
zum Wasser, welches unten wartend stand,

dem leise redenden entgegenschweigend
und heimlich, gleichsam in der hohlen Hand,
ihm Himmel hinter Grün und Dunkel zeigend
wie einen unbekannten Gegenstand;

sich selber ruhig in der schönen Schale
verbreitend ohne Heimweh, Kreis aus Kreis,
nur manchmal träumerisch und tropfenweis
sich niederlassend an den Moosbehängen
zum letzten Spiegel, der sein Becken leis
von unten lächeln macht mit Übergängen.

Andrea Cohen – Barganha

Pagamos-lhe quase
nada — menos do que o pouco
que ele pedira — para nos levar

ao anoitecer das pirâmides
em camelos deserto adentro.
Estipêndio tão escasso

para nos levar, sem
reclamar, para tão longe —
até aqui, sem uma estrela.

Estávamos no meio
do nada, ou em sua borda.
Amigos, perguntou ele, de

dentro daquela escuridão,
quanto vocês me pagarão
para leva-los de volta?

Trad.: Nelson Santander

Bargain

We paid him next
to nothing—less than the little
he’d asked for—to lead us

at dusk from the pyramids
on camels into the desert.
Such slim wages

to take us, without
complaint, all that way—
so far, without a star.

We were in the middle
of nowhere, or at its edge.
Friends, he asked, from

inside that blackness,
what will you pay me
to take you back?

Giuseppe Ungaretti – Vigília

Cima Quatro, 23 de Dezembro de 1915

Toda uma noite em claro
caído ao lado
de um companheiro
massacrado
com sua boca
arreganhada
exposta à lua cheia
com o hematoma
de suas mãos
cravado
em meu silêncio
escrevi
cartas cheias de amor
Não tinha nunca estado
tão
aferrado à vida

Trad.: Nelson Ascher

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 22/12/2017

Veglia

Cimma Quattro il 23 dicembre 1915

Un’intera nottata
buttato vicino
ad un compagno
massacrato
con la sua bocca
digrignata
volta al plenilunio
con la gestione
delle sue mani
penetra
nel mio silenzio
ho scritto
lettere piene d’amore
Non sono mai stato
tanto
attaccato alla vita