Stanley Kunitz – As camadas

Eu já passei por muitas vidas,
uma delas a minha própria,
e não sou quem eu era,
embora alguns dos princípios
se mantenham, e eu lute para deles não me afastar.
Quando olho para trás,
como sou obrigado a fazer
antes de reunir forças
para prosseguir em minha jornada,
vejo os marcos diminuindo
em direção ao horizonte
e os fogos baixos exilando-se
de acampamentos abandonados,
sobre os quais anjos necrófagos
sobrevoam com suas asas pesadas.
Oh, eu fiz de mim uma tribo
de meus verdadeiros afetos,
e minha tribo está dispersa!
Como deve o coração se reconciliar
com seu festival de perdas?
Em uma ventania crescente,
a obstinada poeira dos meus amigos,
aqueles que tombaram pelo caminho,
alfineta amargamente meu rosto.
No entanto, eu me volto, eu me volto,
ligeiramente exultante,
com minha vontade intacta de ir
aonde quer que eu precise,
e cada pedra no meio do caminho
é preciosa para mim.
Na minha noite mais escura,
quando a lua estava coberta
e eu perambulava pelos escombros,
uma nebulosa voz
me orientou:
“Viva nas camadas,
não no entulho.”
Embora eu não domine a arte
de decifra-la,
sem dúvida o próximo capítulo
do meu livro de transformações
já está escrito,
ainda não terminei as minhas mudanças.

Trad.: Nelson Santander

The Layers

I have walked through many lives,
some of them my own,
and I am not who I was,
though some principle of being
abides, from which I struggle not to stray.
When I look behind,
as I am compelled to look
before I can gather strength
to proceed on my journey,
I see the milestones dwindling
toward the horizon
and the slow fires trailing
from the abandoned camp-sites,
over which scavenger angels
wheel on heavy wings.
Oh, I have made myself a tribe
out of my true affections,
and my tribe is scattered!
How shall the heart be reconciled
to its feast of losses?
In a rising wind
the manic dust of my friends,
those who fell along the way,
bitterly stings my face.
Yet I turn, I turn,
exulting somewhat,
with my will intact to go
wherever I need to go,
and every stone on the road
precious to me.
In my darkest night,
when the moon was covered
and I roamed through wreckage,
a nimbus-clouded voice
directed me:
“Live in the layers,
not on the litter.”
Though I lack the art
to decipher it,
no doubt the next chapter
in my book of transformations
is already written,
I am not done with my changes.

Stig Dagerman – A nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer

Sem fé, ouso pensar a vida como uma errância absurda a caminho da morte certa. Não me coube em herança qualquer deus, nem ponto fixo sobre a terra de onde algum pudesse ver-me. Tampouco me legaram o disfarçado furor do cético, a astúcia do racionalista ou a ardente candura do ateu. Não ouso por isso acusar os que só acreditam naquilo que duvido, nem os que fazem o culto da própria dúvida, como se não estivesse, também esta, rodeada de trevas. Seria eu, também, o acusado, pois de uma coisa estou certo: o ser humano tem uma necessidade de consolo impossível de satisfazer.

Procuro o que me pode consolar como o caçador persegue a caça, atirando sem hesitar sempre que algo se mexe na floresta. Quase sempre atinjo o vazio, mas, de tempos a tempos, não deixa de me tombar aos pés uma presa. Célere, corro a apoderar-me dela, pois sei quão fugaz é o consolo, sopro dum vento que mal sobe pela árvore. Debruço-me. Tenho-a!

Mas tenho o que entre os dedos? Se sou solitário – uma mulher amada, um desditoso companheiro de viagem. Se sou poeta ou prisioneiro – um arco de palavras com assombro reteso, um súbita suspeita de liberdade. Se sou ameaçado pela morte ou pelo mar – um animal vivo e quente, coração que pulsa sarcástico; um recife de granito bem sólido.
Sendo tudo isso, é sempre escasso o que tenho!

As formas de consolo: se procuro umas, outras há que me perseguem sem que eu as convoque. Sussurram odiosas. Enchem-me o quarto de murmúrios.
O prazer: “Entrega-te sem restrições”!
O talento: “Usa-me tão mal como a mim mesmo”!
A minha sede de gozo: “Só os gulosos sabem viver”!
A solidão: “Despreza os homens”!
Este desejo de morte: “Fere, Mata”!»

Bem estreito é o fio da navalha! Entre dois perigos me equilibro: de um lado ameaça-me a ávida boca do excesso, do outro a amargura da avareza que de si mesma se alimenta.

E teimo na recusa de optar entre a orgia e a ascese, ainda que com isso me sujeite ao suplício em brasa dos desejos. Não sou livre nos meus atos, por isso tudo me pode ser desculpado.

O que procuro para a vida não é uma desculpa, mas exatamente o seu contrário: é o perdão que busco. Descubro, afinal, que se não levar em conta a minha liberdade, todo o consolo é enganador, mera imagem refletida do desespero. De fato, assim que o desespero me diz – “perca a esperança, o dia não passa de um momento de luz entre duas noites”, há uma falsa voz que me grita – “tenha confiança, a noite não é mais que um momento de trevas entre dois dias”.

A humanidade, porém, não é de palavras que precisa; anseia por um consolo que ilumine. E mesmo aquele que deseje tornar-se mau — agir como se todos os atos fossem defensáveis — deve ter ao menos a bondade de notar quando o consegue.

Ninguém pode enumerar todos os casos em que o consolo é uma necessidade. É impossível saber quando cairá o crepúsculo, impossível enumerar todos os casos em que o consolo se fará necessário. A vida não é um problema que possa resolver-se dividindo a luz pela escuridão ou os dias pelas noites, mas sim uma viagem imprevisível entre lugares que não existem.

Por vezes, à beira-mar, no perpétuo movimento das águas e no eterno fugir do vento, sinto o desafio que a eternidade me lança. Pergunto-me então o que vem a ser o tempo, e descubro que não passa do consolo que nos resta por não durarmos para sempre. Miserável consolo que só os Suíços enriquece…

Noites há em que, sentado à lareira, no quarto mais resguardado de todos, sinto subitamente a morte cercar-me: no fogo, nos objetos pontiagudos que me rodeiam, no peso do teto e na massa das paredes; na água, na neve, no calor, no meu sangue. Pergunto-me então o que vem a ser a nossa muito humana sensação de segurança, e percebo que não passa de um consolo para o fato de a morte ser o que há de mais próximo à vida. Pobre consolo, que não cessa de nos recordar o que desejaria fazer-nos esquecer!

Decido encher todas as minhas páginas em branco com as mais belas combinações de palavras que seja capaz de engendrar. E depois, porque quero assegurar-me que a vida não é absurda e não me encontro só sobre a terra, reúno todas num livro e ofereço-o ao mundo. Este, retribui-me com a riqueza, a glória e o silêncio. Mas não sei que fazer com este dinheiro nem que prazer tirar de contribuir para o progresso da literatura, pois só desejo o que jamais obterei — a certeza de que as minhas palavras tocaram o coração do mundo. É então que me pergunto o que vem a ser o meu talento, e descubro que não passa de uma forma de me consolar da solidão. Risível consolo — que apenas me torna cinco vezes mais pesada a solidão.
Nesse animal que, veloz, atravessa a clareira, por vezes capaz de ver encarnada a liberdade e ouvir uma voz que me insinua: “Vive com simplicidade, frui do que desejas e não temas as leis”! Excelente conselho. Mas de que se trata senão de uma forma de consolo para o fato da liberdade não existir? Impiedoso consolo — para quem sabe que o Homem levou milhões de anos para não conseguir ser senão um lagarto, podre de indiferença!

Quando, por fim, me apercebo que esta terra é uma vala comum, onde Salomão, Ofélia e Himmler repousam lado a lado, concluo que tanto o crápula como a infeliz têm o mesmo fim que o sábio. Por isso, para uma vida falhada, a morte pode tornar-se numa forma de consolo — e bem atroz, sobretudo para quem na vida queria encontrar forma de vencer a morte.

Não possuo filosofia, em que possa mover-me como o peixe na água ou o pássaro no céu. Tudo em mim é um duelo, uma luta travada a cada minuto da vida entre falsas e verdadeiras formas de consolo. Umas não fazem senão aumentar a impotência e tornar-me mais fundo o desespero, outras são fonte de temporária libertação. Falsas e verdadeiras! Deveria antes dizer verdadeira, pois só existe uma consolação verdadeiramente real: a que me diz que sou um homem livre, um indivíduo inviolável, ser soberano no interior dos seus limites.
Mas a liberdade começa na escravidão e a soberania na dependência. O sinal mais vivo da servidão é o medo de viver. O definitivo sinal de liberdade é o fato de o medo deixar espaço ao gozo tranquilo da independência.

Dir-se-á que preciso ser dependente para conhecer o gozo de ser livre! É certamente verdade. À luz dos meus atos, percebo que toda a minha vida parece não ter tido por objetivo senão construir o seu próprio infortúnio: sempre me escravizou o que devia tornar-me livre.

Outros homens têm outros mestres. A mim o talento torna-me escravo ao ponto de não ousar em pregá-lo — tal é o medo de o ter perdido. Mais: subjugo-me de tal modo ao meu nome, que mal me atrevo a escrever uma linha, não vá esta manchá-lo. E, quando se instala a depressão, é dela que sou também escravo. O meu maior desejo é retê-la. O meu prazer mais forte, sentir que tudo o que valho residia no que julgo ter perdido: essa capacidade de gerar beleza a partir do que é em mim desespero, desgosto e fraqueza. Com amargo prazer desejo ver ruir o que arquitetei e ver-me, eu também, envolto na neve do esquecimento. Mas quê? A depressão é uma boneca russa, e na última boneca estão a faca, a lâmina de barbear, o veneno, as águas profundas e o salto para um grande abismo. De todos esses instrumentos de morte me torno escravo. Perseguem-me como cães, a não ser que o cão seja apenas eu. Parece-me então ser o suicídio a única prova da liberdade humana.
Porém — não sei ainda de onde nem como — sinto que se aproxima o milagre da libertação. E a eternidade, que há bem pouco me assombrava, testemunha agora este acesso à liberdade: esta descoberta súbita e simples de que ninguém, nenhum poder, nenhum ser humano, tem o direito de me forçar ao ponto de secar em mim o desejo de viver.

Que é do mar se os rios se recusam? Estou, afinal, perto do mar e da sua ciência. Ninguém pode exigir ao mar que traga todos os barcos, ou ao vento que encha todas as velas. De igual modo, ninguém tem o direito de me exigir que viva prisioneiro de certas funções. A minha divisa não é o dever antes de tudo, mas a vida acima de tudo. Como os outros homens, tenho direito a alguns momentos em que possa sentir-me à parte, em que possa saber que para além de pertencer a essa massa anônima chamada população mundial, sou também uma unidade autônoma.

Só nesses instantes me liberto de tudo o que na minha vida foi causa de desespero. Reconheço que o mar e o vento não deixarão de me sobreviver e que a eternidade nem sequer de mim se lembra. Por que me hei-de eu lembrar dela? A vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo. As suas possibilidades só são limitadas se me ponho a contar o número de palavras ou livros que a morte me dará ainda tempo de acender. Mas por que me hei-de eu pôr a contar? No fundo, o tempo de nada serve, inútil instrumento de medida que só regista o que a vida já me trouxe.

Na verdade, nada do que é importante e acontece e me faz vivo, tem a ver com o tempo. O encontro com um ser amado, uma carícia na pele, a ajuda no momento crítico, a voz solta de uma criança, o frio gume da beleza – nada disso tem horas e minutos. Tudo se passa como se não houvesse tempo. Que importa se a beleza é minha durante um segundo ou por cem anos? A felicidade não só se situa à margem do tempo, como nega toda a relação deste com a vida.

Assim, num só movimento, liberto os ombros do peso de dois fardos: o tempo e as tarefas que teimam em me exigir. Nem a vida é mensurável nem viver é uma tarefa. O salto do cabrito ou o nascer do sol não são tarefas. Como há-de sê-lo a vida humana – força surda a crescer na dor da perfeição? E o que é perfeito não desempenha tarefas. O que é perfeito labora em estado de repouso. É absurdo pretender que a função do mar seja exibir armadas e golfinhos. Evidentemente que o faz – mas preservando toda a sua liberdade. Que outra tarefa a do homem senão viver? Faz máquinas? Escreve livros? Faça o que fizer poderia muito bem fazer outra coisa. Não é isso que importa. Importa é saber-se livre como qualquer outro elemento da criação. Importa é saber-se um fim autônomo, que repousa em si mesmo como uma pedra sobre a areia.

Posso até isentar-me do poder da morte. É verdade que não consigo afastar a ideia que ela se me cola constantemente aos calcanhares. Muito menos sou capaz de lhe negar realidade. Mas posso aniquilar a sua ameaça, evitando escorar a minha vida em pontos de apoio tão precários como o tempo e a glória.

Aqui é que não é lugar de permanência: eternamente voltado para o mar a comparar a sua liberdade com a minha. Chegará o momento de retomar o caminho da terra e enfrentar os responsáveis pela opressão que me faz vítima. Serei forçado a reconhecer que o homem deu vida a formas que, pelo menos na aparência, se revelam mais fortes do que ele. Mesmo a minha recente liberdade não é suficiente para as fatigar, mas somente para suspirar sob o seu peso.

Entretanto, entre as exigências que pesam sobre o homem, sei distinguir as exigências absurdas das inelutáveis. E absurdo é termos perdido para sempre uma forma de liberdade: a que advém de se possuir um elemento próprio. O peixe, tal como o pássaro e o animal terrestre, têm o seu. Thoreau ainda podia contar com a floresta de Walden – mas onde está hoje a floresta na qual o ser humano prove que pode viver livre, e não limitado pelos rígidos moldes da sociedade?

Sou obrigado a responder: em parte alguma. Se desejo viver livre, é por enquanto necessário que o faça no interior desses moldes. Sei que o mundo é mais forte do que eu. E para resistir ao seu poder só me tenho a mim. O que já não é pouco. Se o número não me esmagar, sou, também eu, um poder. E enquanto me for possível empurrar as palavras contra a força do mundo, esse poder será tremendo, pois quem constrói prisões expressa-se pior do que quem se bate pela liberdade. E no dia em que só o silêncio me restar como defesa, então será limitado, pois gume algum pode fender o silêncio vivo.

É este o meu único consolo. Sei que as recaídas no desespero serão profundas e numerosas, mas a lembrança do milagre da libertação leva-me como uma asa a um fim que me inebria: um consolo que seja mais do que apenas isso, e mais vasto que uma filosofia: que seja, enfim, uma razão de viver.

REPUBLICAÇÃO: artigo publicado no blog originalmente em 17/10/2017

Matt Rasmussen – Suicídio reverso

O cara para quem papai vendeu o carro
volta para buscar o dinheiro dele,

sai do veículo. Com trapos imundos
nós o esfregamos até que deixe de brilhar

e limpamos o seu sangue das
costuras do assento.

Cada floco de neve se move antes
de alçar ao céu enquanto eu

percebo que você não estará morto.
O não sofrimento termina

quando a desordem de sua cabeça
se reúne em torno de

uma bala em sua boca.
Você a cospe na arma do papai

antes de chegarmos na entrada da garagem,
enquanto a noite se ilumina

e nós despejamos saco após saco
de folhas no gramado,

esperando que elas pulem
para os galhos nus.

Trad.: Nelson Santander

Reverse Suicide

The guy Dad sold your car to
comes back to get his money,

leaves the car. With filthy rags
we rub it down until it doesn’t shine

and wipe your blood into
the seams of the seat.

Each snowflake stirs before
lifting into the sky as I

learn you won’t be dead.
The unsuffering ends

when the mess of your head
pulls together around

a bullet in your mouth.
You spit it into Dad’s gun

before arriving in the driveway
while the evening brightens

and we pour bag after bag
of leaves on the lawn,

waiting for them to leap
onto the bare branches.

Pedro Salinas – de “Presságios”

41

Estas frases de amor que se repetem tanto
não são nunca as mesmas.
Todas tem idêntico som,
mas uma vida anima cada uma,
virgem e só, se é que a percebes.
E não te canses nunca
de repetir as palavras iguais:
sentirás a emoção que sente a alma
ao ver nascer a estrela primeira
e ao ver que ela se multiplica, conforme a noite avança,
em outras estrelinhas
de brilho diverso e de alma única.
E assim, ao repetires esta
simples frase de amor, vão-se fixando
infinitas estrelas em teu peito:
um mesmo sol empresta luz a todas,
o sol distante que virá amanhã
quando cessarem as estrelas e as palavras.

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 16/10/2017

Pedro Salinas – “Presagios”

41

Estas frases de amor que se repiten tanto
no son nunca las mismas.
idéntico sonido tienen todas,
pero una vida anima a cada una,
virgen y sola, si es que la percibes.
Y no te canses nunca
de repetir las palabras iguales:
sentirás la emoción que siente el alma
al ver nacer a la estrella primera
y al mirar que se copia, según la noche avanza,
en otras estrellitas
de distinto brillar y de alma única.
Y así al repetir esta
simple frase de amor se van prendiendo
infinitas estrellas en el pecho:
un mismo sol les presta luz a todas,
el sol lejano que vendrá mañana
cuando cesen estrellas y palabras.

Thomas Lux – As pessoas da outra aldeia

odiamos as pessoas desta aldeia
e pregaríamos os chapéus
às nossas cabeças por nos recusarmos a remove-los em sua presença
ou grampearíamos as mãos às nossas testas
por nos recusarmos a cumprimenta-los
se não os feríssemos primeiro: enviamos-lhes pacotes de ratos
e, à noite, misturamos vidro moído à sua farinha.
Nós fazemos isto, eles, aquilo.
Eles arrancam a laringe da garganta de um de nossos irmãos.
Nós evisceramos uma de suas irmãs.
Os poços de areia movediça que eles fabricaram eram bons.
Nossas equipes de amputação eram melhores.
Treinamos alguns pássaros para roubar-lhes o trigo.
Eles nos enviaram embaixadores-de-paz-bomba.
Eles fazem isto, nós, aquilo.
Nós cancelamos a importação de ovelhas.
Eles já não compram nossos cobertores.
Nós zombamos do seu maior poeta
e quando isso não surtiu efeito
parodiamos a forma como eles dançam,
causando-lhes dor, pelo que, por sua vez, disseram que nosso Deus
era leproso, careca.
Nós fazemos isto, eles, aquilo.
Dez mil (10.000) anos, dez mil
(10.000) anos belos e brutais.

Trad.: Nelson Santander

The People of the Other Village

hate the people of this village
and would nail our hats
to our heads for refusing in their presence to remove them
or staple our hands to our foreheads
for refusing to salute them
if we did not hurt them first: mail them packages of rats,
mix their flour at night with broken glass.
We do this, they do that.
They peel the larynx from one of our brothers’ throats.
We devein one of their sisters.
The quicksand pits they built were good.
Our amputation teams were better.
We trained some birds to steal their wheat.
They sent to us exploding ambassadors of peace.
They do this, we do that.
We canceled our sheep imports.
They no longer bought our blankets.
We mocked their greatest poet
and when that had no effect
we parodied the way they dance
which did cause pain, so they, in turn, said our God
was leprous, hairless.
We do this, they do that.
Ten thousand (10,000) years, ten thousand
(10,000) brutal, beautiful years.

Ellen Bass – Miniantologia Poética – Sumário

Ellen Bass – Miniantologia Poética

Tradução: Nelson Santander

SUMÁRIO

Ellen Bass – Miniantologia Poética – Apresentação

O importante é

Se Deus não existe

Por qualquer outro nome

No ar

O panorama geral

Portão C22

A dor de deus

O canto dos pássaros do meu pátio

Se você soubesse

Rendição

Tingindo o cabelo dela

Relaxe

Os anéis de Saturno

Nudez

Esperando pela chuva

Borboleta morta

Ode à repetição

A manhã seguinte

Mais

O começo do fim

Pleasantville, New Jersey, 1955

Manhã

Ode ao deus dos ateus

Quando você voltar

Vamos

Índigo

A longa recuperação

Pinheiros de Ponary

Porque

Experimento de empatia

Retorno para mamografia e ultrassom

Matrimônio

Fracasso

Foi esta a porta

Durante a pandemia, ouço a gravação de A Love Supreme no Festival Juan-les-Pins, de 26 de julho de 1965

O tempo que ela quiser

Ellen Bass – O tempo que ela quiser

No caminho para o cemitério, eu dormi.
Não na limusine que levava o caixão da minha mãe,
mas apagada em uma van, a família toda falando ao meu redor.
Eu estava exausta do sofrimento dela, de seus apelos —
me ajuda e chega, chega
e tentando fazer com que a morfina permanecesse na vala de suas gengivas.
Como pude não ter estudado isso com antecedência?
A maneira como minha mãe aprendeu a dar injeções no curso de enfermagem,
enfiando a agulha em uma laranja
e praticando nas outras meninas.
Deus só nos dá força para um dia de cada vez.
Quantas vezes eu a ouvi dizer isso?
Pergunte a si própria, eu posso ganhar este dia?
E então ela ganhou seu último dia.
No caminho de volta, o motorista se perdeu. Enquanto circulávamos por entre
campos desconhecidos e árvores com flores estonteantes, começamos a imaginar
que poderíamos comprar alguns terrenos.
Com cavalos. E um lago. Tudo parecia possível.
E hilário. Estávamos um pouco histéricos,
dirigindo-nos para o luxo do futuro.
Nunca mais retornei ao túmulo da minha mãe.
Mas eu a vejo todos os dias. Ei-la de botas de canos curtos,
voltando da praia com um jarro de água do mar.
Todas as manhãs ela me dá uma colherada. Minerais.
Algo que ela leu no Pleasantville Press.
Aqui ela embrulha canecas e copos no mesmo papel,
depositando-os em sacolas pardas.
Ela está contando moedas nas mãos dos clientes,
cuidando para tocar em suas palmas.
E aqui, em seu roupão numa noite de sábado. A loja acabou de fechar.
Ela morde um sanduíche de carne e cebolas, toma uma cerveja.
Amanhã de manhã ela pode dormir até tarde. Há uma lei
em Nova Jersey que obriga as lojas de bebidas a fechar aos domingos.
Uma lei abençoada que permite que minha mãe durma…
e depois se sente com um cigarro e um café preto,
uma perna robusta cruzada sobre a outra.
Ela pode ficar ali o tempo que ela quiser.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “As Long as She Likes”. In:_____The New Yorker Magazine. EUA: Advanced Publications, S. I. Newhouse, April 18, 2022

Miniantologia Poética – 36

As long as she likes

On the way to the cemetery, I slept.
Not in the limousine that carried my mother’s coffin
but out cold in a van, the family all talking around me.
I was exhausted from her suffering, her pleas—
help me and enough, enough
and trying to get the morphine to stay in the ditch of her gums.
How could I not have studied this in advance?
The way my mother learned to give shots in nursing school,
plunging the needle into an orange
then practicing on the other girls.
God only gives you strength for one day at a time.
How many times did I hear her say this?
Ask yourself, can I make this day?
And then she made her last day.
On the way back, the driver got lost. As we circled unfamiliar
fields and trees dizzy with blossoms, we began to imagine
we could buy some land.
Horses. A lake. Everything seemed possible.
And hilarious. We were a little hysterical,
driving into the luxury of the future.
I’ve never returned to my mother’s grave.
But I see her every day. Here she is in short boots,
coming back from the beach with a jar of seawater.
Each morning she feeds me a spoonful. Minerals.
It’s something she read in the Pleasantville Press.
Here she’s wrapping pints and quarts in that same paper,
sliding them into brown bags.
She’s counting out coins into the customers’ hands,
careful to touch their palms.
And here in her bathrobe on a Saturday night. The store just closed.
She bites into a hoagie, steak and onions, sips a beer.
Tomorrow morning she can sleep late. There’s a law
in New Jersey that liquor stores have to close on Sunday.
A blessed law that lets my mother sleep . . .
and then sit down with a cigarette and black coffee,
one strong leg crossed over the other.
She can sit there as long as she likes.

Ellen Bass – Durante a pandemia, ouço a gravação de A Love Supreme no Festival Juan-les-Pins, de 26 de julho de 1965

As primeiras notas familiares, reconhecíveis em qualquer lugar, me abençoam
nesta manhã selvagem. O sax de Coltrane sobe
e desce em cada beco, entra e sai das veias e sobre a face
das águas e nos corações de pedra.
E quando repete A love supreme de novo e de novo,
é como se, se o dissesse o suficiente, ele pudesse libertar
essa misericórdia dentro de mim, na diminuta cadeia ossicular,
na agitação química, na faísca, e em meu cérebro
recebendo-a — ainda que apenas
por estes trinta e dois minutos e quarenta e oito segundos.
Minha filha está doente, há sete semanas com o vírus.
Ontem, sentindo-se entediada, ela mandou uma mensagem. Que agarrei
como a um carrinho de compras. E carreguei com esperança.
Transformei em prece. Quando a porção do dia da Torá é recitada,
alguém fica de prontidão para corrigir as imprecisões.
As palavras devem vibrar precisamente no ar.
Então eu abro minha porta
para o alento de seu instrumento
que nada recusa, dissipando a grama, sarjetas e árvores,
concreto, carros, a toupeira puxando para baixo as alfaces novas.
Este som generoso que pode significar
tudo, nada, o que você precisar.
E deus não é isso? Não é?
Este arrepio? Este prostrar-se de joelhos?
Deuses caminham entre nós.
Mas os humanos são, apesar de tudo, uma promessa não cumprida.
E ainda assim, esses humanos parecem estar tentando
entrar… onde?
Eu quase posso ouvi-lo. Este velho planeta.
Minhocas passando terra por entre os tecidos.
Orquídeas, milho, rouxinóis atirando-se em canções
como se não houvesse amanhã. Que pode mesmo não haver.
Porém, ainda há montanha. Ainda há vento.
E Coltrane ainda nos oferece as mesmas quatro notas
como um professor dotado de infinita paciência.
Ele me diz que vale a pena
estar em um corpo. Ele me diz que
estou viva em uma cidade litorânea da Califórnia e minha filha
em um arranha-céu em Vancouver, que minha garota,
deitada febril no sofá em que esteve deitada por
quarenta e nove dias e quarenta e nove noites, ainda vive.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “During the Pandemic I Listen to the July 26, 1965, Juan-les-Pins Recording of A Love Supreme”. In:_____New England Review. EUA: Kenyon Hill Publications, Universidade da Califórnia, Vol. 42.2, 2021

Miniantologia Poética – 35

During the Pandemic I Listen to the July 26, 1965, Juan-les-Pins Recording of A Love Supreme

The first familiar, know-them-anywhere notes bless me
this savage morning. Coltrane’s horn racing
up and down every alley, in and out of veins and over the faces
of lakes and into the heart of stones.
And when he repeats A love supreme again and again,
it’s as though, if he says it enough, he can ease
that mercy down into me, into the tiny ossicular chain,
the chemical rush, the spark, and my brain
getting it—if even just
for this thirty-two minutes and forty-eight seconds.
My daughter’s been sick seven weeks with the virus.
Yesterday she felt a little bored, she texted. And I grab that
like a shopping cart. I load it up with hope.
Make it prayer. When the day’s portion of the Torah is recited,
someone stands by to correct mistakes.
The words must vibrate precisely in the air.
So I open my door
to the breath of his instrument
that refuses nothing, lavishing the grass, gutters, and trees,
concrete, cars, the gopher pulling down the new lettuces.
This generous sound that can mean
anything, nothing, whatever you need.
And isn’t that god? Isn’t that it?
This shivering? This fall to my knees?
Gods do walk among us.
But humans are, after all, a broken promise.
And yet, these humans seem to be trying
to enter … what?
I can almost hear it. This old planet.
Worms passing earth through their tissue.
Orchids, corn, mockingbirds throwing themselves into song
like there’s no tomorrow. Which there may not be.
Yet, still a mountain. Still wind.
And Coltrane still offering the same four notes
like a teacher who is infinitely patient.
He’s telling me it’s worth it
to be in a body. He’s telling me
I’m alive in a beach town in California and my daughter
in a high-rise in Vancouver, my girl,
lying feverish on the couch she’s been lying on
forty-nine days and forty-nine nights, still alive.

Ellen Bass – Foi esta a porta

Não havia beleza
quando eu me sentava na cozinha, à mesa,

rompendo as cápsulas rosadas, dividindo os grânulos
para que ela pudesse ingerir a promessa precisa,

onde ela se deitava no quintal envolta em colchas
todas as noites olhando por entre os ramos, estrelas

salpicadas no venoso céu escuro.
Não havia tempo

lá fora. Ou o tempo era grande o suficiente para retê-la.
Uma lua girando lentamente. Esperei

o quanto pude. Então começamos.
Um banho. Chá. Litanias

de consolação, embora ela estivesse inconsolável.
Massageei seus pés diante da porta

o que levou a uma noite de insônia ou
à noite em que nos dividimos

nas celas de nossos sonhos separados. Pela janela,
a paciência das árvores.

Eu estava tão cansada. Eu disse a mim mesma que ela não estava morta.
Que ela não estava morrendo. Chamei aquele de lugar infernal.

Somente com a distância
podemos suportar a beleza

do que é tão abrasador, tendo
a luz viajado tanto, até aqui.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “This Was the Door”. In:_____Indigo. EUA: Copper Canyon Press, April 07, 2020.

Miniantologia Poética – 34

This was the door

There was no beauty
when I sat at the kitchen table, breaking

open the pinkish capsules, dividing the granules
so she could swallow the precise promise,

where she lay in the backyard wrapped in quilts
every night staring up through the branches, stars

flecked in the black-veined sky.
There was no time

out there. Or time was large enough to hold her.
One moon slowly rolling over. I waited

long as I could. Then we began.
A bath. Tea. Litanies

of consolation, though she was inconsolable.
I rubbed her feet before the door

which led to a sleepless night or
to the night of us split

into the cells of our separate dreams. Through the window,
the patience of trees.

I was so tired. I told myself she wasn’t dead.
She wasn’t dying. I called it the hellhole.

It’s only with distance
we can bear the beauty

of that much burning, the light
having traveled so long, so far.

Ellen Bass – Fracasso

Eu parecia uma mulher. Tinha começado
a sangrar, algo que eu queria com fervor,
o mesmo fervor com que ardi
ao beijar Earl Freeman, ao cheirar seu suor de homem
e tocar o côncavo em seu esterno
quando nos deitamos na areia quente em Atlantic City,
o céu claro arqueado sobre nós. Eu estava com tanta pressa
de crescer, disse minha mãe. Mas eu era inocente
no sentido de ainda não ser culpada
quando levei a colher de mingau
aos lábios do meu pai
no dia em que ele voltou do hospital.
Minha mãe teve que voltar ao trabalho —
na Hy-Grade Wines and Liquors,
que pagou a mesa de fórmica marrom,
o refrigerador e a lava-louças rosa. Tínhamos nos mudado
do apartamento sobre a loja
para uma casa com uma porta principal.
Eu queria que as pessoas tocassem a campainha
para eu responder como na TV.
Não parecia que seria muito difícil
alimentar meu pai. Posso fazer isso,
assegurei à minha mãe.
Acho que verei essa cena para sempre, meu pai debilitado
de pijamas, eu segurando
a colher de mingau de aveia fina, levando-a
aos lábios dele e os lábios não
pegando, sem realmente querer ou
não querer. Então o mingau
tornou a cair, escorrendo
por seu queixo mal barbeado e ele
não fez nada para impedir. Meu pai.
Eu o deixei lá. Este foi meu primeiro
ingresso no território do fracasso, um país
que eu visitaria com tanta frequência
que começaria a me sentir em casa.

Trad.: Nelson Santander

BASS, Ellen. “Failure”. In:_____Indigo. EUA: Copper Canyon Press, April 07, 2020.

Miniantologia Poética – 33

Failure

I looked like a woman. I’d begun
to bleed, something I’d wanted with a fervor,
like the fervor with which I burned
to kiss Earl Freeman, to smell his man sweat
and finger the hollow at his breastbone
when we lay in the hot sand in Atlantic City,
the white sky arched over us. I was in such a hurry
to grow up, my mother said. But I was innocent
in the sense of not yet guilty
as I lifted the spoonful of oatmeal
to my father’s lips
the day he came home from the hospital.
My mother had to go back to work—
Hy-Grade Wines and Liquors,
which paid for the brown Formica table and pink
refrigerator, pink dishwasher. We’d moved
from the apartment over the store
into a house with a front door.
I wanted people to ring the bell
and I’d answer it like on TV.
It didn’t seem like it would be too hard
to feed my father. I can do it,
I assured my mother.
I think I may see us there forever, my weak father
in pajamas, me holding
the spoon of thin oatmeal, lifting it
to his lips and the lips not
taking it, not really willing or
unwilling. So the gruel
slid back out again, dribbling
down his badly shaved chin and he
not doing anything to stop it. My father.
I left him there. This was my first
entrance into the land of failure, a country
I would visit so often
it would begin to feel like home.