As primeiras notas familiares, reconhecíveis em qualquer lugar, me abençoam
nesta manhã selvagem. O sax de Coltrane sobe
e desce em cada beco, entra e sai das veias e sobre a face
das águas e nos corações de pedra.
E quando repete A love supreme de novo e de novo,
é como se, se o dissesse o suficiente, ele pudesse libertar
essa misericórdia dentro de mim, na diminuta cadeia ossicular,
na agitação química, na faísca, e em meu cérebro
recebendo-a — ainda que apenas
por estes trinta e dois minutos e quarenta e oito segundos.
Minha filha está doente, há sete semanas com o vírus.
Ontem, sentindo-se entediada, ela mandou uma mensagem. Que agarrei
como a um carrinho de compras. E carreguei com esperança.
Transformei em prece. Quando a porção do dia da Torá é recitada,
alguém fica de prontidão para corrigir as imprecisões.
As palavras devem vibrar precisamente no ar.
Então eu abro minha porta
para o alento de seu instrumento
que nada recusa, dissipando a grama, sarjetas e árvores,
concreto, carros, a toupeira puxando para baixo as alfaces novas.
Este som generoso que pode significar
tudo, nada, o que você precisar.
E deus não é isso? Não é?
Este arrepio? Este prostrar-se de joelhos?
Deuses caminham entre nós.
Mas os humanos são, apesar de tudo, uma promessa não cumprida.
E ainda assim, esses humanos parecem estar tentando
entrar… onde?
Eu quase posso ouvi-lo. Este velho planeta.
Minhocas passando terra por entre os tecidos.
Orquídeas, milho, rouxinóis atirando-se em canções
como se não houvesse amanhã. Que pode mesmo não haver.
Porém, ainda há montanha. Ainda há vento.
E Coltrane ainda nos oferece as mesmas quatro notas
como um professor dotado de infinita paciência.
Ele me diz que vale a pena
estar em um corpo. Ele me diz que
estou viva em uma cidade litorânea da Califórnia e minha filha
em um arranha-céu em Vancouver, que minha garota,
deitada febril no sofá em que esteve deitada por
quarenta e nove dias e quarenta e nove noites, ainda vive.
Trad.: Nelson Santander
BASS, Ellen. “During the Pandemic I Listen to the July 26, 1965, Juan-les-Pins Recording of A Love Supreme”. In:_____New England Review. EUA: Kenyon Hill Publications, Universidade da Califórnia, Vol. 42.2, 2021
Miniantologia Poética – 35
During the Pandemic I Listen to the July 26, 1965, Juan-les-Pins Recording of A Love Supreme
The first familiar, know-them-anywhere notes bless me
this savage morning. Coltrane’s horn racing
up and down every alley, in and out of veins and over the faces
of lakes and into the heart of stones.
And when he repeats A love supreme again and again,
it’s as though, if he says it enough, he can ease
that mercy down into me, into the tiny ossicular chain,
the chemical rush, the spark, and my brain
getting it—if even just
for this thirty-two minutes and forty-eight seconds.
My daughter’s been sick seven weeks with the virus.
Yesterday she felt a little bored, she texted. And I grab that
like a shopping cart. I load it up with hope.
Make it prayer. When the day’s portion of the Torah is recited,
someone stands by to correct mistakes.
The words must vibrate precisely in the air.
So I open my door
to the breath of his instrument
that refuses nothing, lavishing the grass, gutters, and trees,
concrete, cars, the gopher pulling down the new lettuces.
This generous sound that can mean
anything, nothing, whatever you need.
And isn’t that god? Isn’t that it?
This shivering? This fall to my knees?
Gods do walk among us.
But humans are, after all, a broken promise.
And yet, these humans seem to be trying
to enter … what?
I can almost hear it. This old planet.
Worms passing earth through their tissue.
Orchids, corn, mockingbirds throwing themselves into song
like there’s no tomorrow. Which there may not be.
Yet, still a mountain. Still wind.
And Coltrane still offering the same four notes
like a teacher who is infinitely patient.
He’s telling me it’s worth it
to be in a body. He’s telling me
I’m alive in a beach town in California and my daughter
in a high-rise in Vancouver, my girl,
lying feverish on the couch she’s been lying on
forty-nine days and forty-nine nights, still alive.