Anne Sexton – Coragem

É nas pequenas coisas que a vemos.
O primeiro passo da criança,
tão espantoso quanto um terremoto.
A primeira vez que você andou de bicicleta,
tateando na calçada.
A primeira palmada, quando seu coração
partiu em uma viagem sozinho.
Quando eles o chamaram de bebezão
ou pobre ou gordo ou doido
e o transformaram num alienígena, você sorveu o ácido deles
e o escondeu.

Mais tarde,
quando você enfrentou a morte por bombas e balas,
não foi com uma bandeira,
mas apenas com um chapéu
cobrindo seu peito.
Você não afagou a fraqueza dentro de si,
embora ela estivesse lá.
Sua coragem era uma pequena brasa
que você continuava ingerindo.
Se seu amigo o salvou
e morreu no processo,
então a coragem dele não era coragem,
era amor; um amor tão simples como espuma de barbear.

Mais tarde,
quando você suportou um desespero indescritível,
fê-lo sozinho então,
recebendo uma transfusão do fogo,
arrancando as feridas do seu coração,
e torcendo-o como uma meia.
Depois, meu compatriota, você pulverizou sua dor,
deu a ela uma massagem nas costas
e cobriu-a com um cobertor;
depois de dormir um pouco,
ela despertou com as asas das rosas
e se transformou.

Mais tarde,
quando você enfrentar a velhice e sua conclusão natural,
sua coragem ainda se mostrará nas pequenas coisas,
cada primavera será uma espada que você afiará,
aqueles que você ama viverão em uma febre de amor,
e com o calendário você barganhará
e no último momento
quando a morte abrir a porta dos fundos
você calçará suas pantufas
e dará o fora.

Trad.: Nelson Santander

Courage

It is in the small things we see it.
The child’s first step,
as awesome as an earthquake.
The first time you rode a bike,
wallowing up the sidewalk.
The first spanking when your heart
went on a journey all alone.
When they called you crybaby
or poor or fatty or crazy
and made you into an alien, you drank their acid
and concealed it.

Later,
if you faced the death of bombs and bullets
you did not do it with a banner,
you did it with only a hat to
cover your heart.
You did not fondle the weakness inside you
though it was there.
Your courage was a small coal
that you kept swallowing.
If your buddy saved you
and died himself in so doing,
then his courage was not courage,
it was love; love as simple as shaving soap.

Later,
if you have endured a great despair,
then you did it alone,
getting a transfusion from the fire,
picking the scabs off your heart,
then wringing it out like a sock.
Next, my kinsman, you powdered your sorrow,
you gave it a back rub
and then you covered it with a blanket
and after it had slept a while
it woke to the wings of the roses
and was transformed.

Later,
when you face old age and its natural conclusion
your courage will still be shown in the little ways,
each spring will be a sword you’ll sharpen,
those you love will live in a fever of love,
and you’ll bargain with the calendar
and at the last moment
when death opens the back door
you’ll put on your carpet slippers
and stride out.

José Ángel Buesa – Ela amará a outro homem

Ela amará a outro homem.
Eu estarei longe, caminhando para o olvido.
E pode ocorrer que alguém mencione meu nome,
mas ela fingirá não tê-lo ouvido.

Ela amará a outro homem:
o tempo passa e o amor se finda,
e é natural que o que foi lume
acabe se transformando em cinzas.

Embora ninguém o queira,
envelhecem as vidas e as coisas,
e é natural também que na primavera
as roseiras deem rosas.

É natural. Assim,
ela amará a outro homem, e tudo bem.
Não sei se ela se esqueceu de mim,
nem me importa com quem.

Mas, quiçá, um dia,
ouvindo uma canção,
ela sinta aquela velha melodia
mudar o ritmo do seu coração.

Ou será algum vestido
que usou quando a conheci,
ou o cheiro do jardim úmido:
um dia ela há de pensar em mim.

Ou pode ser um sinal,
um jeito de olhar,
ou certas vielas, um mal cerzido botão,
ou uma folha seca ao acaso a voar.

E de alguma maneira
ela lembrará de mim, sem querer,
ao ouvir passos na ladeira
como os meus, ao entardecer.

Será em algum momento,
não importa quando nem onde, lá ou cá,
porque o amor, por semelhar-se ao vento,
parece que se foi mas aqui está.

E se, nesse momento, ela suspira
e ele pergunta o que há,
ela terá que inventar uma mentira
para dele a verdade ocultar.

E ele não verá que eu o causei,
isso que era tão meu e do que se me privou;
e, embora ele possa amá-la mais do que eu a amei,
ela não poderá amá-lo mais do que me amou…!

Trad.: Nelson Santander

REPUBLICAÇÃO com pequenas alterações na tradução: poema publicado no blog originalmente em 15/03/2017

Ella Amará a Otro Hombre

Ella amará a otro hombre.
Yo voy lejos, andando hacia el olvido.
Y puede suceder que alguien me nombre,
pero ella fingirá no haber oído.

Ella amará a otro hombre:
el tiempo pasa y el amor finaliza,
y es natural que lo que fue una brasa
acabe convirtiéndose en ceniza.

Aunque nadie lo quiera,
envejecen las vidas y las cosas,
y es natural también que en primavera
los rosales den rosas.

Es natural. Por eso,
ella amará a otro hombre, y está bien.
No sé si ya olvidó mi último beso,
ni me importa con quién.

Pero quizás, un día,
oyendo una canción,
sentirá que esa vieja melodía
le cambia el ritmo de su corazón.

O será algún vestido
que yo le conocí,
o el olor del jardín cuando ha llovido,
pero algún día ha de pensar en mí.

O puede ser un gesto,
un modo de mirar,
o ciertas calles, o un botón mal puesto,
o una hoja seca que voló al azar.

Y de alguna manera
tendrá que recordarme, sin querer,
escuchando unos pasos en la acera
como los míos al atardecer.

Será en algún momento,
no importa cuándo o dónde, aquí o allá,
porque el amor, por parecerse al viento,
parece que se ha ido y no se va.

Y si en ese momento ella suspira
y él pregunta por qué,
le tendrá que inventar una mentira
para que nunca sepa por qué fue.

Y él no verá esa huella,
eso tan mío en lo que ya perdí;
y, aunque la pueda amar más que yo a ella,
ella no podrá amarlo más que a mí..!

Rosanna Warren – Comparação

Como quando seu amigo, excelente esquiador austríaco, na história
que ela sempre nos contava, teve que encarar
seu primeiro salto olímpico de esqui e, da
rampa de largada sobre o desfiladeiro que mergulhava
tão vertiginosamente que sua borda inferior
desaparecia de vista, olhou
para um horizonte de Alpes que nadava e balançava ao seu redor
como barcos de brinquedo em uma banheira, e ele não conseguiu,
apesar de toda sua determinação férrea,
treinamento e coragem,
desaferrar seus dedos da grade do portão de largada, de modo que
seus companheiros de equipe tiveram que se juntar para soltar
suas mãos, dedo por dedo,
a fim de libertá-lo, também

diante da morte minha
mãe agarrou as grades da cama, mas mesmo assim
olhava fixamente para a frente — e
quem foi, finalmente,
que desprendeu
suas mãos?

Trad.: Nelson Santander

Simile

As when her friend the crack Austrian skier, in the story
she often told us, had to face
his first Olympic ski jump and, from
the starting ramp over the chute that plunged
so vertiginously its bottom lip
disappeared from view, gazed
on a horizon of Alps that swam and dandled around him
like toy boats in a bathtub, and he could not
for all his iron determination,
training, and courage
ungrip his fingers from the railings of the starting gate, so that
his teammates had to join in prying
up, finger by finger, his hands
to free him, so

facing death, my
mother gripped the bed rails but still
stared straight ahead—and
who was it, finally,
who loosened
her hands?

Wislawa Szymborska – As Cartas dos Mortos

Lemos as cartas dos mortos como deuses impotentes,
mas deuses assim mesmo, porque conhecemos as datas posteriores.
Sabemos quais dívidas não foram pagas.
Com quem as viúvas rapidamente se casaram.
Pobres mortos, mortos cegos,
enganados, falíveis, canhestramente previdentes.
Vemos as caretas e os sinais feitos pelas costas.
Capturamos o som de testamentos sendo rasgados.
Sentados comicamente diante de nós como no pão com manteiga,
ou correndo atrás do chapéu que o vento lhes arrancou da cabeça.
Seu mau gosto, Napoleão, vapor e eletricidade,
seus remédios mortíferos para doenças curáveis,
seu tolo apocalipse segundo são João,
o falso paraíso na terra segundo Jean-Jacques…
Observamos em silêncio seus peões no tabuleiro,
só que movidos três casas à frente.
Tudo que previam aconteceu totalmente de modo diverso,
ou um pouco diverso, que é o mesmo que totalmente diverso.
Os mais fervorosos nos fitam nos olhos com confiança
porque, segundo suas contas, verão neles a perfeição.

Trad.: Regina Przybycien

REPUBLICAÇÃO: poema publicado originalmente no blog em 12/03/2017

Annie Dillard – Como consumimos nossos dias

Como consumimos nossos dias
é, evidentemente,
como consumimos nossas vidas.

O que fazemos com esta hora,
e com aquela,
é aquilo que fazemos.

Um calendário
protege do caos
e do arbítrio.

É uma rede
para capturar dias.
É um andaime

sobre o qual um trabalhador
pode ficar em pé
e laborar com ambas as mãos

em espaços de tempo.
Um calendário é uma maquete
da razão e da ordem –

desejado, dissimulado,
e por isso concebido;
é a paz e o abrigo

encravados nas ruínas do tempo;
é um bote salva-vidas
no qual você se encontra,

décadas depois,
ainda vivendo.
Cada dia é o mesmo,

por isso você se lembra
da sequência posteriormente
como um padrão borrado e potente.

How we spend our days

How we spend our days
is, of course,
how we spend our lives.

What we do with this hour,
and that one,
is what we are doing.

A schedule
defends from chaos
and whim.

It is a net
for catching days.
It is a scaffolding

on which a worker
can stand
and labor with both hands

at sections of time.
A schedule is a mock-up
of reason and order –

willed, faked,
and so brought into being;
it is a peace and a haven

set into the wreck of time;
it is a lifeboat
on which you find yourself,

decades later,
still living.
Each day is the same,

so you remember
the series afterward
as a blurred and powerful pattern.

Wislawa Szymborska – Bodas de Ouro

Devem ter sido diferentes um dia,
fogo e água, diferindo com veemência,
sequestrando e se doando
no desejo, no assalto à dessemelhança.
Abraçados, apropriaram-se e expropriaram
por tanto tempo,
que nos braços restou o ar
translúcido depois do relâmpago.

Um dia a resposta antecipou a pergunta.
Uma noite adivinharam a expressão do olhar do outro
pelo tipo de silêncio, no escuro.

O sexo fenece, os segredos se consomem,
na semelhança as diferenças se encontram
como todas as cores no branco.

Qual deles está duplicado e qual aqui está faltando?
Qual sorri com um duplo sorriso?
A voz de quem ressoa nas duas vozes?
Quem assente quando acenam com a cabeça?
Com o gesto de quem levam a colher à boca?

Quem arrancou a pele de quem?
Quem vive e quem morreu
enredado na linha – de qual mão?

Devagarinho, de tanto olhar, nascem gêmeos.
A familiaridade é a mais perfeita das mães –
não faz distinção entre os seus dois filhos,
mal recorda qual é qual.

No dia das bodas de ouro, dia festivo,
uma pomba vista de forma idêntica pousou na janela.

Trad.: Regina Przybycien

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 11/03/2017

Ada Limón, poeta laureada

Ada Limón, uma legítima representante da novíssima geração de poetas norte-americanos, e de quem venho traduzindo alguns poemas para o blog desde 2020, acaba de ser eleita a nova poeta laureada dos Estados Unidos, a comenda de maior prestígio do campo da poesia daquele país.

O cargo de poeta laureado – que tradicionalmente é conferida pelo Congresso Nacional norte-americano – foi criado em 1937 e, desde então, muitos dos poetas mais conhecidos e respeitados dos EUA foram nomeados para ele, como Philip Levine, Rita Dove, Billy Collins e Tracy K. Smith.

Clique aqui para conhecer um pouco do trabalho dessa poeta.

Jim Harrison – Água

Antes de nascer eu era água.
Pensei nisso sentado em uma cadeira
azul cercado por malvas rosas, vermelhas,
e brancas no jardim em frente
ao meu estúdio verde. Há conclusões aqui
a tirar, mas eu não posso mais fazer isso. 
O homem nasce, cresce, canta, 
dança, ama, envelhece,
agoniza. Isto é um rio circular
e nós somos seus peixes que se tornam água.

Trad.: Nelson Santander

Water

Before I was born I was water.
I thought of this sitting on a blue
chair surrounded by pink, red, white 
hollyhocks in the yard in front
of my green studio. There are conclusions
to be drawn but I can’t do it anymore. 
Born man, child man, singing man, 
dancing man, loving man, old man,
dying man. This is a round river 
and we are her fish who become water.

Wislawa Szymborska – Natureza-morta com um Balãozinho

Em vez da volta das lembranças
na hora de morrer
quero ter de volta
as coisas perdidas.

Pela porta, janela, malas,
sombrinhas, luvas, casaco,
para que eu possa dizer:
Para que tudo isso.

Alfinetes, este e aquele pente,
rosa de papel, barbante, faca,
para que eu possa dizer:
Nada disto me faz falta.

Esteja onde estiver, chave,
tente chegar a tempo,
para que eu possa dizer:
Ferrugem, minha cara, ferrugem.

Caia uma nuvem de atestados,
licenças, enquetes,
para que eu possa dizer:
Que lindo o sol se pondo.

Relógio, aflore do rio
e permita que te segure na mão,
para que eu possa dizer:
Você finge ser a hora.

Vai aparecer também um balãozinho
levado pelo vento,
para que eu possa dizer:
Aqui não há crianças.

Voe pela janela aberta,
voe para o vasto mundo,
que alguém grite: Ó!
para que eu possa chorar.

Trad.: Regina Przybycien

REPUBLICAÇÃO: poema publicado no blog originalmente em 10/03/2017

Eavan Boland – Cartas aos mortos

I

Estudiosos do Império Antigo encontraram cerâmicas
gravadas por toda parte com marcas e sinais.

II

Escritos em louças de lodo. Nas bordas dos vasos.
Colocados na entrada dos túmulos.
O vermelho do ferro de um mundo.
Postado no limiar de outro.
Chamaram-nas de cartas aos mortos.

III

Eles não choravam ou se lamentavam por meio destas marcas e sinais.
Eles eram intimistas, suplicantes, desesperados, locais.

IV

Aqui, no limiar de uma primavera irlandesa
que você não pode mais ver,
arbustos de espinheiros com suas
pequenas flores de marfim
em breve ganharão vida em cada vento. Em breve,
cada encosta será uma noiva distante.

V

Se eu pudesse escreve-la de uma maneira diferente,
a história secreta de um lugar,
como se fosse uma história de águas ocultas, percebidas apenas
pela estranha acústica de um riacho sob os pés
na grama baixa
seria esta –
esta história.

VI

Eu queria trazer-lhe prendas da ilha,
o espinheiro da última semana de abril,
a vista do Liffey acima de Leixlip.
Os salgueiros ali poderiam ser meninas,
seus cabelos ainda molhados depois de um mergulho.
Em vez disso, trouxe-lhe indagações.

VII

Quantas filhas ficaram sozinhas em um túmulo,
e pensaram isto das vidas de suas mães?
Que elas eram jovens em um país que odiava o corpo da mulher.
Que envelheceram em um país que odiava o corpo da mulher.

VIII

Eles pediam conselhos aos mortos.
Eles pediam poder aos mortos.
Estas são as minhas cartas aos mortos.

Trad.: Nelson Santander

N. do T.: Letters to the Dead foi publicado na obra Domestic Violence (2007), e integra a Seção com o mesmo nome, da qual faz parte também, dentre outros, o poema And Soul, já traduzido e publicado neste blog (E alma).

Letters to the Dead

I

In the Old Kingdom scholars found pottery
written round and around with signs and marks.

II

Written in silt ware. On the rims of bowls.
Laid at the entrance to tombs.
Red with the iron of one world.
Set at the threshold of another.
They called them letters to the dead.

III

They did not mourn or grieve these signs or marks.
They were intimate, imploring, local, desperate.

IV

Here at the threshold of an Irish spring
you can no longer see,
hawthorn bushes with their
small ivory flowers
will soon come alive in every wind. Soon,
every hillside will be a distant bride.

V

If I could write it differently,
the secret history of a place,
as if it were a story of hidden water, known only
through the strange acoustic of a stream underfoot
in shallow grass
it would be this –
this story.

VI

I wanted to bring you the gifts of the island,
the hawthorn in the last week of April,
the sight of the Liffey above Leixlip.
The willows there could be girls,
their hair still wet after a swim.
Instead, I have brought you a question.

VII

How many daughters stood alone at a grave,
and thought this of their mothers’ lives?
That they were young in a country that hated a woman’s body.
That they grew old in a country that hated a woman’s body.

VIII

They asked for the counsel of the dead.
They asked for the power of the dead.
These are my letters to the dead.