Ada Limón – O fim da poesia

Chega de ósseos e pássaro e girassol
e calçados de neve, bordo e brotos, sâmara e sementes,
chega de chiaroscuro, chega de portanto e profecia
e estoicos estancieiros e fé e pai nosso e acima
de todos, chega de parças e peito*, tez e deus
que não esquece e corpos estelares e pássaros congelados,
chega de vontade de prosseguir e de vontade de desistir ou de como
uma certa luz faz a coisa certa, chega
de ajoelhar e de levantar e de olhar
para dentro e para cima, chega de armas,
drama e suicídio de conhecido, a carta há muito
perdida na cômoda, chega do desejo e
do ego e da obliteração do ego, chega
de mãe e filho e pai e filho
e chega de apontar para o mundo, exausta
e desesperada, chega de brutalidade e de fronteiras,
chega de você pode me ver?, você pode me ouvir? chega
de eu sou humana, chega de eu estou sozinha e desesperada,
chega de animal me salvar, chega de faça
chuva**, chega de sofrimento, chega do ar e seu alívio,
estou pedindo que você me toque.

Trad.: Nelson Santander

* N. do T.: A expressão “tis of thee” foi retirada da tradicional canção patriótica americana “America (My Country, Tis of Thee)” (algo como “América (O meu país é o teu)”), composta em 1831. Logo na sequência temos o verso “enough of bosom and bud”. Em inglês, “bosom of buddy” significa, literalmente, “amigo do peito”. A alusão a uma canção patriótica seguida de duas palavras que, juntas, formam a expressão “amigo do peito” em um (anti)poema que versa sobre a negativa catártica, em tempos pandêmicos, de tudo o que é exagerado, obtuso, anti-poético e também poético, mas também inalcançável – inclusive a própria linguagem poética, não me pareceu um acaso. Assim, uma das interpretações possíveis desses versos é a de que o poema faz uma menção crítica ao suposto relacionamento secreto e promíscuo entre Trump e Putin. Aqui cabe uma observação. Segundo Gabriel Perissé, “o artista nos educa sem se preocupar com resultados pedagógicos ou técnicas didáticas. O resultado que ele procurava era, fundamentalmente, produzir a obra, levar ao fim o seu plano, por mais vago que estivesse em sua cabeça. Concluída a obra, nada mais poderá fazer. Ainda que deseje, não poderá prever ou alterar as consequências do trabalho pronto e entregue à sensibilidade… ou à falta de sensibilidade dos seus semelhantes. A obra de arte não pertence mais ao artista, no sentido de que será livremente acolhida e interpretada por outras pessoas. O leitor será coautor. (…) Vencendo passividades e inércias, quem se aproxima da obra de arte, torna-se autor de sua interpretação e, de certo modo, recriador da obra (…)”.

Assim, ainda que não seja aquela a melhor interpretação deste trecho do poema, a deixa é convidativa demais para que eu não a aproveite. Assim, optei por traduzir (não sem uma ponta de satisfação) “and tis of thee” por “acima de todos”. Minha versão obviamente faz referência ao conhecido slogan do governo Jair Bolsonaro (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”). Se de fato o poema, nesse trecho, quis fazer uma crítica à promiscuidade entre religião e política que marca o governo conservador de Donald Trump, minha versão faz o mesmo, só que ao governo Bolsonaro que, para além da hipocrisia carola que é uma de suas características mais marcantes, tem o apoio incondicional da chamada Bancada da Bíblia. Tendo optado por tal caminho, não fica difícil intuir porque traduzi o verso seguinte (“enough of bosom and bud”) por “chega de parças e peito”: além de, como ocorre no verso original, tentar emprestar um sentido poético a uma gíria (“bosom of buddy”, em inglês e “parça”, em português), é um fato incontestável que Bolsonaro se julga um grande amigo de Donald Trump (a quem, certa feita, chegou a dirigir um discreto “i love you”). Não sei se a recíproca é verdadeira, mas para Bolsonaro, ele e Trump seriam verdadeiros “parças”, amigões mesmo do peito.

A tradução, portanto, promove o deslocamento do sentido original do poema (sempre na pressuposição de que foi essa a intenção da poeta), que faz referência à parceria Trump-Putin, substituindo o presidente russo pelo brasileiro. Os contextos geopolíticos e a dinâmica desses relacionamentos são evidentemente distintas. Trump parece nutrir por Putin uma admiração que não dispensa ao presidente brasileiro. O relacionamento Trump/Putin é marcado pela simetria e equilíbrio de forças, algo muito distante da sabujice e subserviência de Bolsonaro em relação ao presidente americano. Todavia, a mudança de foco não altera o sentido geral do poema e, com vantagem para o seu entendimento em terras tupiniquins, adapta-o para a nossa realidade. Assim, o mesmo grito de “chega” que o poema parece dirigir a Donald Trump é despejado, em português, em Jair Bolsonaro. Chega mesmo.

** No contexto do poema, a frase “enough of the high water” parece se referir ao ditado americano que diz: “Come Hell Or High Water”. Em português, esse ditado pode ser traduzido por “aconteça o que acontecer” ou pelo popular “faça chuva ou faça sol”, do qual aproveitei a primeira sentença.

The end of poetry

Enough of osseous and chickadee and sunflower
and snowshoes, maple and seeds, samara and shoot,
enough chiaroscuro, enough of thus and prophecy
and the stoic farmer and faith and our father and tis
of thee, enough of bosom and bud, skin and god
not forgetting and star bodies and frozen birds,
enough of the will to go on and not go on or how
a certain light does a certain thing, enough
of the kneeling and the rising and the looking
inward and the looking up, enough of the gun,
the drama, and the acquaintance’s suicide, the long-lost
letter on the dresser, enough of the longing and
the ego and the obliteration of ego, enough
of the mother and the child and the father and the child
and enough of the pointing to the world, weary
and desperate, enough of the brutal and the border,
enough of can you see me, can you hear me, enough
I am human, enough I am alone and I am desperate,
enough of the animal saving me, enough of the high
water, enough sorrow, enough of the air and its ease,
I am asking you to touch me.

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