Jack Gilbert – Poemas e Elegias para Michiko Nogami: I – Noites e manhãs sem fim

Jack Gilbert (1925-2012) foi um poeta americano conhecido por sua poesia lírica e evocativa que explorava temas como amor, perda, morte e a natureza. Ele nasceu em Pittsburgh, Pensilvânia, e frequentou a Universidade de Pittsburgh. Recebeu seu mestrado pela San Francisco State University, em 1963.

Gilbert publicou vários livros de poesia ao longo de sua carreira, incluindo “Views of Jeopardy” (1962), “Monolithos” (1982), e “The Great Fires: Poems,1982-1992” (1994), que foi indicado para o Prêmio Pulitzer de Poesia. Sua poesia é caracterizada por uma voz lírica intensa e sensível que explora temas como amor, perda e a beleza da vida.

Gilbert conheceu a artista plástica Michiko Nogami (1946-1982) logo após o término de seu longo relacionamento com a também poeta Linda Gregg, e logo se apaixonou por ela. Juntos, eles viveram em diversas cidades do mundo, incluindo San Francisco, Paris e Grécia.

Em uma longa entrevista que deu ao The Paris Review , Gilbert afirmou acreditar que as únicas coisas sobre o que realmente valia a pena escrever eram o amor, a morte, o homem, a virtude, a natureza, a magnitude, a perfeição, o mal, o sofrimento, a coragem, a moralidade, o bem viver, a honra e a identidade. Os pungentes poemas que Gilbert dedicou a Michiko certamente abrangem boa parte dessas preocupações temáticas.

Após a morte de Michiko em 1982, Gilbert escreveu diversas elegias para ela. Em seus poemas, ele expressou seu amor profundo e sua saudade pela esposa, além de refletir sobre a natureza da perda e da dor. A beleza intrínseca desses trabalhos, que mesclam dor e lirismo, tornaram-se uma das marcas registradas da poesia de Gilbert.A partir de hoje, e pelos próximos dias, publicarei nesse espaço alguns dos poemas e elegias que selecionei e traduzi dentre os mais significativos que Gilbert escreveu em homenagem a Michiko Nogami. Começando pelo contemplativo “Noites e Manhãs sem Fim”.

A partir de hoje, e pelos próximos dias, publicarei nesse espaço alguns dos poemas e elegias que selecionei e traduzi dentre os mais significativos que Gilbert escreveu em homenagem a Michiko Nogami. Começando pelo contemplativo “Noites e Manhãs sem Fim”.

Espero que gostem.

Noites e manhãs sem fim

Saio pelo portão dos fundos e atravesso o pomar.
Subo o riacho ouvindo o murmúrio da água.
Atravesso as oliveiras, sob o grande cipreste,
até alcançar uma estrada de terra. Ao dobrar à esquerda
estou acima da vila. Michiko levanta os braços,
eu aceno de volta e a estrada sobe em direção ao convento.
Passo por ele e desço pelo outro lado para uma trilha
de burros coberta de seixos. Logo posso ver o vilarejo
branco em miniatura lá embaixo, junto ao mar.
Uma vereda se ramifica através de um antigo terraço
até a cabana de pastores da Linda. Procuro por mensagens embaixo
da pedra de mármore. Deixo um bilhete e sigo em frente.

A essa altura, Michiko estará sob a pérgola sombreada
atrás da casa, observando as andorinhas
no céu matinal ou pintando
a figueira ou traduzindo poemas do período Heian.

A trilha desce mais rapidamente pelos sedimentos rochosos.
Atravessa a fazenda com uma criança e um cão feroz à direita
e a casa da velha com seu marido moribundo.
Fica mais íngreme e sobretudo pedregulhosa. Avanço rapidamente
nas partes altas, em deleite, e chego ao riacho seco,
aos juncos e ao emaranhado de oleandros na base
da montanha. Faz calor agora.

Todos os sábios que conheci na Ásia me advertiram para não me apegar.
Explicaram como tudo o que amo envelheceria
ou me seria tirado, e como eu sofreria.
Tentei explicar-lhes a barganha.
Eles pacientemente ajudaram-me a entender. Eu lhes disse que o demônio
deve se preocupar se nos deixa obter tanto, como se não fosse possível
opor-se àquilo que somos. Christopher Smart acreditava que
Jeoffry, seu gato, brincava com os ratos para lhes dar
uma chance, já que um em cada sete escapava de suas brincadeiras.

Ao longo da planície agrícola, sob um sol escaldante.
Campos estéreis e áridos vinhedos.
Depois, a curva para o Vale das Corujas, onde vivi
três anos atrás. Detenho-me diante da feia figueira
em busca de sombra e de frutos. Depois, belos campos
de cevada madura atrás do azul intenso do Egeu.

Michiko deveria estar comigo naquele ano
no vale, mas demos azar.
Agora ela está sentada na montanha
por entre os jasmins. Como o luar
ao meio-dia, disse Linda. Ela fatiou
os pepinos e temperou-os com suco de limão.

Detenho-me diante da melhor figueira. Atravesso um campo
com três vacas pretas e passo por delicadas cabras. Cruzo
o estreito riacho até o tesouro de ameixas em um jardim cercado.

Novas trilhas pedregosas e calor intenso. As casas de fazenda
se tornam mais frequentes e este é o limite da cidade.
Compro tomates e ovos, lula para o jantar, e pão.
Verifico o correio e recomeço.

Monges Zen circundam uma colina todos os dias por cem dias,
depois percorrem-na por mais cem, assentados em seus próprios espíritos.
Subo diariamente pelo cenário grego de São Francisco,
alcançando as dez milhas e a luz e, claro, Michiko.
Fortes ventos americanos hoje agitam violentamente os abetos
e eucaliptos. Arrancando e derrubando. Seu volume
de perto é surpreendente, como búfalos à distância de um braço.
Eu me movo diminuto entre eles sob o vento forte. Dois gambás
cruzam uma clareira e eu reconheço os rostos dos mortos.
Dois anos já e eu sei que Michiko não está assim.
Seus ossos foram queimados e estão escondidos no Japão.
A Michiko de quem sinto a falta é a Michiko que carrego comigo.

Somos compostos de memória. Somos o passado aceso
no presente. Sem a história vivenciada, a América é apenas
um outro país. Sem a consciência das terças-feiras
e dos anos anteriores, sou apenas alguém, sem inflexão.
Nosso passado é uma orquestra que se funde com o tenor agora.
Os onze anos de Michiko são meus. Felicidade são aqueles
meses nos jardins de Kyoto e ela comigo agora
entre essas árvores que se desfazem. A memória é
o capital que temos em nossas vidas.

Michiko chama baixinho do pomar que há em mim.
Ela se esquiva e ri, meiga e satisfeita.
Eu sei que ela, seu tímido coração e seus pequenos seios
estão lá com as macieiras e os figos,
invisíveis, porém, entre as folhas.
O ar é fresco ao seu redor.

Trad.: Nelson Santander

Nights and Four Thousand Mornings

I go out the back gate and past the orchard.
Up the stream over the small sound of water.
Through olive trees, under the big cypress,
and come to a dirt road. When it curves left
I am above the villa. Michiko raises her arms
and I wave and the road climbs to the nunnery.
I go past and down the other side onto the scree
of a donkey trail. Soon I can see the village
white and miniature far below by the sea.
A path branches off through an old terrace
to Linda’s shepherd hut. I look under the marble
rock for messages. Leave a note and go on.

Now Michiko will be in the shady arbor
behind the house watching the swallows
in the early morning sky or painting
the fig tree or translating Heian poems.

The trail drops faster across stone shelving.
The farm with a child and a mean dog on the right.
The old woman’s house with her dying husband after.
It gets steeper and mostly boulders. I go too fast
on their tops as a treat and come to the dry creek
and rushes and thicket of oleander at the bottom
of the mountain. It is hot now.

Every wise man I met in Asia warned me against caring.
Explained how everything I loved would get old,
or be taken away and I would suffer.
I tried to explain what a bargain it is.
They patiently helped me understand. I said the Devil
must care if he lets us get so much, as though he can’t
resist something we are. Christopher Smart believed
his cat, Jeoffry, played with the mouse to give it
a chance, for one in seven escaped by his dallying.

Across the flat farmland through ferocious sun.
Bleak fields and straggling dry vineyards.
Past the turn for the Valley Of the Owls where I lived
three years before. I stop at the ugly fig tree
for shade and the fruit. Then handsome fields
of ripe barley with the Aegean very blue behind.

Michiko was to be with me that year
in the valley, but we had bad luck.
Now she is sitting on the mountain
under the jasmine. Like moonlight
in midday, Linda said. She has sliced
cucumbers and put them with lemon juice.

I stop at the best fig tree. I pass the field
of three black cows and pass the delicate goats. Cross
the dribbling stream to plum treas in a walled garden.

Stony plots again and severe heat. The farmhouses
become more frequent and it is the edge of town.
I buy tomatoes and eggs, squid for dinner and bread.
Check the mail and start back.

Zen monks circle a hill each day for a hundred days,
then walk it for a hundred sitting in their spirit.
I climb the Greek landscape daily in San Francisco,
getting the ten miles and the light and Michiko clear.
Today giant American winds churn violently in the firs
and eucalyptus. Uprooting and tearing down. Their bulk
is astonishing up close, like buffaloes at arm’s length.
I move small among them in the strong air. Two possums
cross a clearing and I recognize the faces of the dead.
Two years and and I know Michiko is not like that.
Her bones are burned clean and hidden in Japan.
The Michiko I miss is the Michiko I contain.

We are composed of memory. We are the past ignited
in the present. Without felt history, America is merely
another country. Without Tuesday and the years before
conscious in me, I am merely someone, uninflected.
Our past is an orchestra which merges with the tenor now.
The eleven years of Michiko are me. Those months
in the gardens of Kyoto and she with me now amid these
splintering trees are both happiness. Memory is
the equity we have in our lives.

Michiko calls softly out of the orchard in me.
She eludes and laughs, gentle and pleased.
I know she and her shy heart and small breasts
are in there with the apple trees and figs,
however invisible among the leaves.
The air is fresh around her.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s