Ei, pervertida, ele diz, olhando-me, no funeral
de nossa amiga, causa da morte: um câncer nas
entranhas do cérebro no interior da estrutura óssea
que dava ao seu rosto tanta beleza. Durante a químio,
seu encanto se igualou aos reveses – seu couro cabeludo
à mostra e os músculos de sua mão esquerda muito fracos
para segurar um pincel. Ele a tranquilizava
no hospital, na ala de cuidados paliativos, ministrando-lhe
lascas de gelo, caldo vegano. Quando a fala dela serpeava
para além da compreensão, ele ouvia
a sequência de sons como se fosse um jazz selvagem demais
para o sentido humano – Sonny Rollins soltando-se
no sax ou Johnny Hodges uivando no seu
flugelhorn dourado. Estou implorando, Johnny gemeu
na noite fria e úmida, lenço azul alisando
o topo de sua cabeça através de um gorro de crochê branco,
implorando por perdão. Era o que eu precisava naquela
época, minha tristeza libertada pelas amarras e sexo
selvagem, a clareza subitamente mais importante
do que sua dor. Ainda pervertida?, ele perguntou. Na mão,
não posso esquecer, uma dose de uísque, sua superfície
intacta, mantida em perfeita tensão pela borda.
Seus olhos serenos, devolvendo meu rosto para mim, acalmavam,
como seu olhar havia feito em nosso ano turbulento e
novamente nesta primavera para nossa amiga que, eu ouvi,
reagiu ao seu toque, as pálpebras piscando abertas,
embora o nervo ótico estivesse machucado pela pressão
crescente do tumor, e a luz repentina ferisse seus olhos.
Trad.: Nelson Santander
Old Friends, Here and Gone
Hey, kinky, he says, checking me out at our friend’s
memorial, cause of death a cancer in
the folds of brain inside the bony structure
that gave her face such beauty. During chemo
her grace grew equal to reversals – her scalp
bared and the muscles of her left hand too weak
to hold a watercolor brush. He had soothed
her in the hospital, the hospice, spooning
ice chips, vegan broth. When her speech meandered
beyond understanding, he had listened to
the streams of sound as if to a jazz too wild
for human sense – Sonny Rollins breaking loose
on sax or Johnny Hodges yowling through his
golden flugelhorn. I’m beggin’, Johnny moaned
one clammy night, blue handkerchief mopping
the crown of his head through a white crochet cap,
beggin’ for mercy. That’s what I’d needed back
then, my sadness set free by restraints and rough
sex, the clarity of sudden more essential
than its pain. Still kinky, he asks. In the hand
I can’t forget, a dram of scotch, its surface
undisturbed, held in perfect tension by the rim.
His eyes, calm, returning my face to me, calmed,
as his gaze had done in our turbulent year and
again this spring for our friend who, I have heard,
rallied at his touch, eyelids blinking open,
although the optic nerve was bruised by the tumor’s
mounting pressure, and sudden light hurt her eyes.