(...)
IV
Para além
da teoria
da genitalidade
você mantém
a mão direita
na maçaneta
sem girar
enquanto
na esquerda
— no copo d’água
que a esquerda
segura —
o comprimido
de Aspirina C
impõe seu
próprio tempo
seu próprio
ritmo
a todos
os outros
ritmos
nervosos
irracionais
do dia,
inclusive o
da mala
parada
a seus pés;
para além
dos liames
invisíveis
e dos instintos
historicamente
determinados
você começa
a lembrar
de quando
tinha 15 anos
e vagava
pelas ruas
do bairro feio
mas arborizado,
a ponta do nariz
apontando
para o chão
para o abismo
para os afogados,
o coração
transbordando
o erotismo
vulgar e potente
dos blockbusters
dos 70;
para além
dos poderes
biológicos
autorregeneradores,
do pôster de
Jim Morrison
peito nu
pendurado na
parede do
quarto de dormir
e da pluralidade
radical
das durações
foi
no fim das contas
a época Disco
que correspondeu
profundamente
a algo
dentro de você
desconhecido
primeiro,
desgovernado
depois
— sua garota
dançava
irredutível
a toda
tentativa de retratá-la
– Puck? Titânia? Oberon?
dançava
emitindo
transmitindo
os relâmpagos
sublimes do
pensamento,
sinais luminosos
de vida
sinais que
para sua surpresa
(e salvação?)
chegaram até aqui
(por quê?)
chegaram a este
aqui e agora
(como?)
da mão congelada
sobre a maçaneta,
da cabeça explodindo
de dor de cabeça,
do comprimido de
Aspirina C
ainda pela metade
parado e se
dissolvendo
dentro do
copo d’água,
em todas
as direções
por todos
os poros,
a mala
no chão,
o uber lá fora
buzinando,
oprimido
opressor.
XI
GUARDAR UM DIA PARA QUANDO NÃO HAJA
O outono está na sala e o sol é como nenhum outro.
Há também algo como um espelho onde um velho se contempla.
Um chão onde descalça os sapatos.
Um cabide onde pendura as calças.
Pelo ar flutua a baleia branca, e suas luzes gotejam seiva dourada.
Sérgio Sant'Anna se foi.
(10 de maio de 2020)
XII
Pouco tempo antes de morrer, Sérgio postou em sua página no Facebook: "Borges, sim acho que é ele, tem um conto em que um personagem, escritor, à beira da morte, consegue de Deus que o seu tempo seja elástico o suficiente para que ele possa terminar um romance. Queria isso para a minha novelinha, e confesso que rezo todos os dias."
XIII
Na verdade, querido Sérgio, trata-se, no conto de Borges, de um poeta. E o ano extra que recebe de Deus para completar seu drama em versos, passa-o inteiro de pé, em frente ao pelotão de fuzilamento. Tudo está paralisado, até as balas disparadas pelos fuzis, até os soldados nazis que as disparam, até a mosca que voava bem diante de seus olhos, até a gota que pende de uma goteira, até seu corpo. Só sua voz interna não para nunca. Ao cabo de um ano, termina mentalmente seu poema, encontra a última rima que faltava para concluir o último verso.
E vê a gota cair.
(os poemas acima são todos da seção "Baleia Branca")
PAI
A soma das idades
do pai e do filho
dava 111
naquela tarde
no pequeno cemitério da Ilha
onde um
dos dois
deixou para sempre
a condição de estável
(quanto a sua composição)
e de móvel
(quanto a suas posições)
e então
eu jurei:
pelo bico necrológico
do sol-corvo
que me furava os olhos,
por todos os afogados
do Reino da Necessidade:
pai,
a guerra acaba aqui
a dor acaba aqui
acaba aqui o escândalo
Jonas engole a baleia.
Nenhuma nuvem
ou voz de mulher ao redor
aliás
somos só nós dois
aqui
(que te importaria agora
isso ou seu contrário?)
mais três ou quatro
funcionários desanimados
(súbito – e a suborno – solícitos)
e
a poucos metros
sob um excesso de luz suburbana
dois cães com a língua de fora
rosnando uma indecisão
cheia de promessas
e nada se conclui.
Eis nossa colheita
pela eternidade
intransplantável: sol dos infernos
cães
seus odores
terrores
e coitos,
e uma municipalidade
bem mais que
medianamente corrupta.
Esmaguei um mosquito
entre as páginas
do Livro de Condolências
uma pequena mancha
vermelha
ao lado do meu nome
e me fui.
Não só a palavra escrita
é manipulação gráfica
do pensamento.
Segui a trilha indicada
por setas pintadas no chão –
agulhas sismográficas
ou
corda bamba e tensa
sobre as minas ásperas das almas -
apontando a saída.
Saltei para dentro
do ônibus que passava
tremelicante
sentido Centro.
Os caligramas de Apollinaire
são meu real
teste de Rorschach