Está fora
de meu alcance
o meu fim
Sei só até
onde sou
contemporâneo
de mim
Está fora
de meu alcance
o meu fim
Sei só até
onde sou
contemporâneo
de mim
Só agora sei
que existe a eternidade:
é a duração
finita
da minha precariedade
O tempo fora
de mim
é relativo
mas não o tempo vivo:
esse é eterno
porque afetivo
— dura eternamente
enquanto vivo
E como não vivo
além do que vivo
não é
tempo relativo:
dura em si mesmo
eterno (e transitivo)
Como não havia ninguém
na casa aquela
terça-feira tudo
é suposição: teria
tomado seu costumeiro
banho
de imersão por volta
de meio-dia e trinta e
de cabelos ainda
úmidos
deitou-se na cama para
descansar não
para morrer
queria
dormir um pouco
apenas isso e
assim não lhe
terá passado pela
mente – até
aquele último segundo
antes de
se apagar no
silêncio – que
jamais voltaria
ao ruidoso mundo
da vida
Sem apelo
no vórtice do
dia no
abandono do chão
na lâmina da
luz feroz
fora da vida
desfaz-se agora
a minha doída
desavinda companheira
1
Que faz a defunta manhã
na manhã nova?
Que sois vós hoje
alegria de outrora
riso extinta palavra de afeto?
que sois vós
senão fantasmas
senão miasmas
a infectar
de morte
o que está vivo?
2
Se há sol no pátio
e um carro penetra nele
e estaciona
e o chofer desce
bate a porta
e sai andando
se isto é isto
e nada mais
que isto,
te manténs no que vês
e estás feliz:
entendes finalmente
que o passado
é pura doença.
(Poema Dramático para Muitas Vozes)
I
Eis aqui o morto
chegado a bom porto
Eis aqui o morto
como um rei deposto
Eis aqui o morto
com seu terno curto
Eis aqui o morto
com seu corpo duro
Eis aqui o morto
enfim no seguro
II
De barba feita, cabelo penteado
jamais esteve tão bem arrumado
De camisa nova, gravata borboleta
parece até que vai para uma festa
No rosto calmo, um leve sorriso
nem parece aquele mais-morto-que-vivo
Imóvel e rijo assim como o vês
dir-se-ia que nunca esteve tão feliz
III
Morava no Méier desde menino
Seu grande sonho era tocar violino
Fez o curso primário numa escola pública
quanto ao secundário resta muita dúvida
Aos treze anos já estava empregado
num escritório da rua do Senado
Quando o pai morreu criou os irmãos
Sempre foi um homem de bom coração
Começou contínuo e acabou funcionário
Sempre eficiente e cumpridor do horário
Gostou de Nezinha, de cabelos longos,
que um dia sumiu com um tal de Raimundo
Gostou de Esmeralda, uma de olhos pretos
Ela nunca soube desse amor secreto
Endoidou de fato por Laura Marlene
que dormiu com todos menos com ele
Casou com Luísa, que morava longe,
não tinha olhos pretos nem cabelos longos
Apesar de tudo, foi bom pai de família
sua casa tinha uma boa mobília
Conversava pouco mas foi bom marido
Comprou televisão e um rádio transístor
Não foi carinhoso com a mulher e a filha
mas deixou para elas um seguro de vida
Morreu de repente ao chegar em casa
ainda com o terno puído que usava
Não saiu notícia em jornal algum
Foi apenas a morte de um homem comum
E porque ninguém noticiou o fato
Fazemos aqui este breve relato
IV
Não foi nada de mais, claro, o que aconteceu:
apenas um homem, igual aos outros, que morreu
Que nos importa agora se quando menino
O seu grande sonho foi tocar violino?
Que nos importa agora quando o vamos enterrar
se ele não teve sequer tempo de namorar?
Que nos importa agora quando tudo está findo
se um dia ele achou que o mar estava lindo?
Que nos importa agora se algum dia ele quis
Conhecer Nova York, Londres ou Paris?
Que nos importa agora se na mente confusa
ele às vezes pensava que a vida era injusta?
Agora está completo, já nada lhe falta:
nem Paris nem Londres nem os olhos de Esmeralda
V
Mas é preciso dizer que ele foi como um fio
d’água que não chegou a ser rio
Refletiu no seu curso o laranjal dourado
sem que nada desse ouro lhe fosse dado
Refletiu na sua pele o céu azul de outubro
e as esplendentes ruínas do crepúsculo
E agora, quando se vai perder no mar imenso,
tudo isso, nele, virou rigidez e silêncio:
toda palavra dita, toda palavra ouvida
todo riso adiado ou esperança escondida
toda fúria guardada, todo gesto detido
o orgulho humilhado, o carinho contido
o violino sonhado, as nuvens, a espuma
das nebulosas, a bomba nuclear
agora nele são coisa alguma
VI
Mas no fim do relato é preciso dizer
que esse morto não teve tempo de viver
Na verdade vendeu-se, não como Fausto, ao Cão:
vendeu sua vida aos seus irmãos
Na verdade vendeu-a, não como Fausto, a prazo:
vendeu-a à vista, ou melhor, deu-a adiantado
Na verdade vendeu-a, não como Fausto, caro:
vendeu-a barato e, mais, não lhe pagaram
VII
Enfim este é o morto
agora homem completo:
só carne e esqueleto
Enfim este é o morto
totalmente presente:
unha, cabelo, dente
Enfim este é o morto:
um anônimo brasileiro
do Rio de Janeiro
de quem nesta oportunidade
damos notícia à cidade
Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.
Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.
A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.
A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelo barulho dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.
Este fevereiro azul
como a chama da paixão
nascido com a morte certa
com prevista duração
deflagra suas manhãs
sobre as montanhas e o mar
com o desatino de tudo
que está para se acabar.
A carne de fevereiro
tem o sabor suicida
de coisa que está vivendo
vivendo mas já perdida.
Mas como tudo que vive
não desiste de viver,
fevereiro não desiste:
vai morrer, não quer morrer.
E a luta de resistência
se trava em todo lugar:
por cima dos edifícios
por sobre as águas do mar.
O vento que empurra a tarde
arrasta a fera ferida,
rasga-lhe o corpo de nuvens,
dessangra-a sobre a Avenida
Vieira Souto e o Arpoador
numa ampla hemorragia.
Suja de sangue as montanhas,
tinge as águas da baía.
E nesse esquartejamento
a que outros chamam verão,
fevereiro ainda em agonia
resiste mordendo o chão.
Sim, fevereiro resiste
como uma fera ferida.
E essa esperança doida
que é o próprio nome da vida.
Vai morrer, não quer morrer.
Se apega a tudo que existe:
na areia, no mar, na relva,
no meu coração – resiste.
Pleno de vida agora, consistente, visível,
Eu, quarenta anos vividos, no ano oitenta e três anos dos Estados,
Ao homem que viva daqui a um século, ou dentro de quantos séculos for,
A ti, que ainda não nasceste, dirijo este canto.
Quando leias isto, eu, que agora sou visível, terei me tornado invisível,
Enquanto tu serás consistente e visível, e darás realidade a meus poemas, voltando-te para mim,
Imaginando como seria bom se eu pudesse estar contigo e ser teu camarada:
Faz de conta que eu estou contigo. (E não o duvides muito, porque eu estou aí nesse momento.)
Trad.: Ferreira Gullar
Full of life now
Full of life now, compact, visible,
I, forty years old the eighty-third year of the States,
To one a century hence or any number of centuries hence,
To you yet unborn these, seeking you.
When you read these I that was visible am become invisible,
Now it is you, compact, visible, realizing my poems, seeking me,
Fancying how happy you were if I could be with you and become your comrade;
Be it as if I were with you. (Be not too certain but I am now with you.)
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?