Eugénio de Andrade – Ver claro

Toda poesia é luminosa, até
A mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
Em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver o claro.
Se regressar
Outra vez e outra vez
E outra vez
A essas sílabas acesas
Ficará cego de tanta claridade
Abençoado seja se lá chegar.

Eugénio de Andrade – Mulheres de preto

Há muito que são velhas, vestidas
de preto até a alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.

Eugénio de Andrade – Fim de tarde em S Lázaro

Estou sozinho. Nas estantes, restos
da minha vida. É quase
noite sobre os telhados.
No livro abandonado nas mãos
corre um rio: à deriva
duas ou três coisas que foram
minhas: um punhado de amoras,
a porosa delícia do barro,
essas nuvens, essas
aves num céu branco de trigo,
um sorriso
que também era um copo de água

Eugénio de Andrade – Adeus

Já gastamos as palavras pela rua, meu amor
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastamos tudo menos o silêncio.
Gastamos os olhos com o sal das lágrimas,
gastamos as mãos à força de as apertarmos,
gastamos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
À vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastamos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

Eugénio Andrade – Passamos pelas coisas sem as ver

Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.

Eugénio de Andrade – Ver Claro

Toda a poesia é luminosa, até
a mais obscura.
O leitor é que tem às vezes,
em lugar de sol, nevoeiro dentro de si.
E o nevoeiro nunca deixa ver claro.
Se regressar
outra vez e outra vez
e outra vez
a essas sílabas acesas
ficará cego de tanta claridade.
Abençoado seja se lá chegar.