Nelson Santander – Apresentação de “Joana”, de Joan Margarit

Em 16 de fevereiro deste ano, falecia, aos 82 anos de idade, vítima de um câncer, Juan Margarit I Consarnau, o grande poeta, arquiteto e catedrático catalão (foi professor da disciplina Cálculos Estruturais da Escola Superior de Arquitetura de Barcelona, de 1964 até sua aposentadoria, em 1998), vencedor do Prêmio Miguel de Cervantes (2019), dentre inúmeras outras distinções literárias. Foi, sem dúvida, um dos maiores poetas catalães de todos os tempos.

Pouco conhecido no Brasil (e mesmo em Portugal), sua morte mereceu escassas resenhas da imprensa brasileira, que não fez justiça à importância do poeta para as letras catalã e espanhola (ele escreveu simultaneamente e publicou toda a sua obra nas duas línguas) e para a literatura mundial. Joana Emídio Marques, do sítio eletrônico Observador, de Portugal, em coluna escrita quando da publicação, naquele país, da coletânea Misteriosamente Feliz (tradução de Miguel Filipe Mochila. Edição/reimpressão: novembro de 2020. Editora: Flâneur / Língua Morta) vai ao ponto:

Abrimos a antologia ‘Misteriosamente Feliz’, lemos uns quantos poemas e ficamos estarrecidos: como é que este poeta nos anda a passar despercebido há mais de 40 anos?

Uma das grandes utopias da modernidade tecnológica, cientifica, digital é prometer-nos de que nada nos escapará. Que estamos no mundo todo sem sair de casa, que tudo o que há a saber e a descobrir está ao nosso alcance num clic. No entanto, muitos de nós não conhecemos Joan Margarit, o enorme poeta que se tornou um dos símbolos da cultura catalã e da Catalunha independente. Seguramente um dos grandes poetas do século XXI.

Margarit não é apenas um dos mais amados e premiados poetas da Catalunha, é também um dos mais lidos poetas contemporâneos espanhóis. Até porque, apesar de escrever em catalão, o poeta encarrega-se ele próprio de traduzir tudo para castelhano, pelo que a sua obra é amplamente conhecida e aumenta a nossa estranheza de não haver editores interessados em divulgá-la.

Joana Emídio Marques (https://observador.pt/especiais/joan-margarit-pode-um-homem-salvar-uma-lingua/ Consulta em 20/08/2021)

Quando me deparei pela primeira vez com a poesia de Joan Margarit, em 2018, soube que ali estava um poeta pouquíssimo conhecido em língua portuguesa que merecia ser lido por essas bandas. Passei então a traduzir poemas colhidos na internet e escolhidos ao sabor de minhas predileções pessoais. O primeiro deles foi Discurso do método, publicado no blog em 07/06/2018. Desde então, já traduzi e publiquei mais de 50 poemas Joan Margarit (há outros no forno, a serem publicados oportunamente). Caso alguém queira conhecer esses poemas, clique na tag com o nome do poeta ou aqui: https://singularidadepoetica.art/category/joan-margarit/

Eventualmente, acabei me deparando, de forma esparsa, com alguns poemas que se destacavam aos meus olhos não só pela qualidade, excepcional, mas acima de tudo pelo tema que eles abordavam: a experiência do poeta diante da morte de uma de suas filhas. Esses poemas, publicados no livro que leva o mesmo nome da filha falecida – Joana – me impressionaram profundamente, não só pela sua temática, mas também por sua beleza dolorosa e cristalina. O primeiro desses poemas que traduzi e publiquei (em julho de 2018) foi Um pobre instante, cujos primeiros versos foram assim traduzidos por mim:

A morte não é mais do que isto: um quarto,
a luminosa tarde na janela,
e este toca-fitas na mesinha
tão desligado como o teu coração
com todas as tuas canções cantadas para sempre.
[…]

Joan Margarit, “Um pobre instante”, in Joana (2002)

Esses versos iniciais são a pura essência do realismo lírico da poesia de Joan Margarit: o verso claro, simples, coeso, o diálogo com os clássicos na técnica de se valer de uma questão de alta indagação (a morte) que vai sendo refinada e resumida a objetos da realidade cotidiana (o quarto, a tarde que brilha do outro lado da janela, o toca-fitas da filha que partiu) para poder ser abarcada em toda sua dimensão e tornar-se suportável. Os outros poemas de Joana que traduzi com o passar do tempo – todos retirados de publicações na internet – eram de igual qualidade.

Mas eu só pude compreender o que Joana realmente representava quando recentemente adquiri este livro e pude ler todos os poemas que o compõem de uma sentada. Não vou sequer tentar descrever o impacto que uma obra dessas causa no apreciador de poesia. Qualquer adjetivação soaria artificial. Peço aos pouco mais de 10 seguidores que eventualmente acessam esta página que o façam por eles mesmos e, se quiserem, deixem seus comentários.

Sim, porque a partir de amanhã começarei a publicar no blog os poemas que compõem Joana, em sua íntegra, na ordem em que foram dispostos no livro.

Antes, porém, a despeito do próprio Joan Margarit esclarecer sucintamente o como, o quando e o porquê de ter escrito este livro, na introdução da obra que será publicada amanhã, cumpre fazer uma breve introdução para quem não conhece o contexto geral em que a obra foi gestada.

Joan Margarit era casado com Mariona Ribalta com quem teve quatro filhos: Mònica, Anna, Joana e Carles. Dos quatro filhos, Joan e Mariona sepultaram dois: Anna, que morreu pouco depois de nascer, em 67. E Joana, falecida em 2001, com 30 anos de idade, de câncer.

Joana nascera com uma síndrome rara (síndrome de Rubinstein-Taybe) que lhe causou uma série de deficiências físicas e mentais – o que não a impediu de ter uma vida afetiva riquíssima no seio da família. Nas palavras de Joan Margarit:

(Joana) Foi, desde muito cedo, uma pessoa muito especial: de um lado — por causa de suas deficiências, que lhe deixaram o amor como única ferramenta para sobreviver — era incapaz de rancor, de orgulho, de quaisquer dos mais ínfimos sinais de maldade. Por outro lado, a paixão pela vida e sua sensibilidade lhe permitiam compreender e utilizar todas as conexões sentimentais com as pessoas. Ter sido seu pai significou estar sempre ao lado do que a vida pode oferecer de mais delicado e bondoso. Isto não quer dizer que tenha sido uma época sem dificuldades, sofrimentos e crises de desespero, especialmente até que a saúde encontrasse o ponto de equilíbrio necessário dentro de suas limitações. Nada se compara a poder cuidar de alguém a quem se ama, mas é difícil encontrar alguém como Joana com quem estabelecer uma relação de uma alegria e ternura tão profundas que, com o passar dos anos, já não se sabe quem cuida de quem.

Joan Margarit, prólogo, in Joana (2002)

Joana já era uma presença importante em outras obras anteriores de Joan Margarit, mas a sua morte marca um antes e um depois na vida e na obra do poeta. Impactado com o sofrimento da última etapa da vida da amada cria, ele começa, oito meses antes da morte dela, a escrever os poemas que comporiam o livro. Joana, com efeito, foi escrito entre outubro de 2000 e setembro de 2001 e publicado em 2002.

Na introdução feita para a republicação da obra em 2020, o também poeta e catedrático Luis García Montero explica:

“Joana (2002) é o livro em que Joan Margarit deixou o testemunho dos últimos dias de vida e morte da sua filha Joana, no ano de 2001 […]. A grave deficiência com que nasceu e a dependência durante anos da mãe e do pai foi uma experiência decisiva, capaz de transformar os sentimentos e as razões do existir. Essa experiência aos poucos foi marcando os passos de um amor, de uma convivência, de uma realização e de uma obra poética. Uma realidade tão contundente e enraizada, vivida com honestidade, não pode ser abordada com retórica, nem com estratégias adoçantes, ou com lisonjas falaciosas, ou com excessos ostensivos. Só pode verbalizar-se ou formalizar-se através de um compromisso íntimo com a verdade. Não faltam experiências e vozes vazias. A poesia é o lugar sagrado onde este poeta secular decidiu não aceitar a mentira, não se enganar, não se camuflar entre enganos ao olhar para o presente, relembrar o passado ou ter ilusões sobre o futuro. E não se trata de levantar em posse de uma Verdade escrita em maiúsculas, mas de comprometer-se a não mentir. Não há dogmatismo sem lealdade ética com as vigas da própria identidade.”

in Joana, Joan Margarit, Editora Fondo de Cultura Económica de España, 1ª edição (23 março de 2020)

É impossível mergulhar na leitura dos poemas de Joana e sair indiferente da experiência. Tentando mitigar a tristeza que permeou todo o período no qual o livro foi escrito, Margarit não nos poupa de nada. Em um verdadeiro striptease da alma, a via crucis emocional que ele é obrigado a percorrer no período nos é apresentada sem censura. Está tudo lá: o sofrimento por um futuro inevitável, sua descrença nos aspectos espirituais da morte, as dolorosas intervenções cirúrgicas às quais a filha foi submetida, o sofrimento e a dor experimentados por ela, a deterioração progressiva da saúde no final, os reflexos familiares, a morte, o funeral, o pós-morte, os remorsos etc.. Comove a coragem com que o poeta enfrenta essa realidade dilacerante, optando conscientemente por não se iludir sobre o futuro, enquanto agarra-se desesperadamente a fiapos de construções intelectuais para tentar seguir em frente, com resignação:

[…]
Mas, se estás morrendo, ainda vives,
e faço irromper a última alegria
em teu rosto cansado enquanto tomo
entre as minhas tuas pequenas mãos.
E repito para mim mesmo:
morrer ainda é viver.
[…]

Joan Margarit, “Súplica”, in Joana (2002)

Por isso, ele não se poupa nem nos poupa de nada: talvez imbuído do objetivo – mencionado no prólogo – de fechar este ciclo para reencontrar, se é que é possível, a Joana de antes, Margarit é assustadoramente sincero:

[…].
Com a testa apoiada na vidraça
peço perdão às minhas filhas mortas,
porque já quase nunca penso nelas.
[…]

Joan Margarit, “No final da noite”, in Joana (2002)

Mas o leitor se decepcionará se julgar que Joana é um recanto apenas de dor e expiação. Embora escrito por um pai devastado pela perda da filha amada, a obra é também o produto final de um artesão da palavra, que, por princípio e técnica compositiva, busca, sempre que possível, fugir ao subjetivismo:

“Tenho a tendência, mesmo nos poemas mais subjetivos, de tirar o máximo possível do sentimento – o sujeito – para que prevaleça um certo senso de objetividade naqueles que leem o poema”

Joan Margarit, em entrevista a José Luis Morante [https://www.joanmargarit.com/category/noticies/page/4/], consultado em 30/08/2021

E, embora profundamente triste, o livro não chega a ser pessimista. Algo que perpassa todo o livro é a percepção da passagem do tempo e da marca que ela deixa em cada um de nós. Assim, os poemas de Joana são sobretudo uma forma de não esquecer, apesar da marcha implacável do tempo. Não esquecer a ternura, o amor, os escassos momentos de deleite.

Sobre Joana já se disse:

[…] Talvez o melhor que se possa dizer sobre um livro seja que ele é necessário. Além da vida e além da literatura, é isso. Poucas vezes esses versos comoventes produziram tamanha sensação de conforto.

Javier Rodríguez Marcos, Conforto e desolação, El País, 17/05/2002 [https://elpais.com/diario/2002/05/18/babelia/1021679426_850215.html], consultado em 21/08/2021

Joana é um livro sofrido, pungente. Mas é também, ao seu modo triste, um livro de esperança e de amor. E, por todas estas razões, imprescindível.

Espero que os que me leem compartilhem comigo do mesmo entusiasmo.

Nelson Santander

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