Thomas Mann – Morte em Veneza (excerto)

“(…) Gustav von Aschenbach era de estatura um pouco abaixo da média, moreno, rosto inteiramente barbeado. A cabeça parecia um pouco grande demais em relação à sua figura quase franzina. O cabelo, penteado para trás, escasso no alto da cabeça, abundante e já bem grisalho nas têmporas, enquadrava uma testa alta, cheia de rugas que mais pareciam cicatrizes. O arco dos óculos de ouro, de lentes sem aro, se encaixava na base do nariz enérgico, de curvatura aristocrática. A boca era grande, ora relaxada, ora subitamente estreita e contraída; as faces, magras e sulcadas, o queixo benfeito, cindido de leve por uma covinha. Grandes golpes do destino pareciam ter-se abatido sobre essa cabeça quase sempre inclinada de lado, em atitude sofredora, e, no entanto, não fora uma vida difícil e agitada que esculpira aquele rosto, mas sim a arte. Por trás dessa fronte haviam brotado as réplicas fulminantes do diálogo entre Voltaire e o rei a respeito da guerra; esses olhos, que lançavam por trás dos óculos um olhar cansado e profundo, haviam visto o inferno sangrento dos hospitais militares da Guerra dos Sete Anos. Mesmo sob o prisma pessoal, a arte é uma vida elevada. Ela traz uma felicidade mais profunda e um desgaste mais acelerado. Grava no rosto de seu servidor os traços de aventuras imaginárias e espirituais, e com o tempo, mesmo no caso de uma vida exterior de uma placidez monástica, provoca uma perversão, um refinamento, um cansaço e uma excitação dos nervos, que mesmo uma vida cheia de paixões e prazeres desvairados dificilmente poderia produzir.”

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